Nossa rua
ainda é sossegada. As calçadas, diferentes de outras no centro da cidade, não
são esbulhadas pela mercantilice – formal ou informal e impune à fiscalização
–, o que permite que elas cumpram não
apenas a função social de tráfego de pedestres, mas a conversa com os vizinhos, nas noites
agradáveis de verão.
Numa
dessas noites, comentávamos o caso de uma menina, de comportamento um tanto
agressivo (não sei se devido a pertubações mentais) que, para deixar de
importunar outras pessoas, tinha sido colocada num depósito de lixo. No meio da
conversa, um vizinho, em tom de brincadeira, perguntou se a solução para o
problema não seria ele ou eu adotar a menina.
Aquela
pergunta, feita de maneira despretensiosa por um amigo que irradia bom humor,
pode provocar reflexão bem mais profunda do que muitos filosofismos de happy
hour de calçada: o que estamos fazendo – eu e você – para adotar a causa
das pessoas que tratamos como estorvo na sociedade? Pensando sobre a questão,
lembrei-me de Estamira.
Rotulada
de louca por parentes e pela Medicina, Estamira virou protagonista de
documentário de sucesso, filme de estreia do fotógrafo Marcos Prado como
diretor de cinema, que foi premiado aqui e alhures. Nele podemos ver e ouvir a
contundência da vida e das filosofices – para muitos, maluquices – de uma
mulher sexagenária, que encontra no lixão a possibilidade não apenas de
sobreviver, mas de se sentir feliz, e que contrapõe sua manifesta sandice à
nossa presunçosa lucidez.
Vindas
do meio do lixo para as telas do cinema, muitas falas de Estamira,
entrecortadas por xingamentos contra Deus e os “espertos ao contrário”, ganham projeção bem maior do que os discursos
daqueles que tachamos de loucos e deixamos falando sozinhos. Isso aqui, diz ela
falando sobre o lixão, “é um depósito de restos e de descuidos... quem revelou
o homem como único condicional ensinou ele conservar as coisas e conservar as
coisas é proteger, lavar, limpar... quem revelou o homem como único condicional não ensinou
trair, não ensinou humilhar, não ensinou tirar, ensinou ajudar... sou louca,
sou doida, sou maluca, sou azogada, porém lúcido, consciente e
sentimentalmente... a minha missão é revelar... eu não estou orientando, nem
quero orientar, estou alertando... eu nunca tive aquela coisa que eu sou, sorte
boa... tudo que é imaginário tem, existe, é...”
Alguns
anos após o sucesso do filme, Estamira
morreu. Chegava ao fim a história de uma vida atribulada: sofrimento devido à
doença mental da mãe; abandono de quem, em vez de lhe dar o devido cuidado,
jogou-a num prostíbulo aos doze anos de idade; traição e maus tratos dos
companheiros; violência do estupro, mesmo ante o apelo de que o estuprador não
fizesse aquilo pelo amor de Deus; espancamento para externar, à força, a fé nesse
mesmo Deus; o filho que acha que as alucinações da mãe são possessões
demoníacas; a filha mais nova, criada por mãe postiça, que tem dúvida se teria
ficado mais feliz ao lado de Estamira; tudo isso teve ter contribuído para que
a cabeça daquela mulher ficasse “parecendo um copo cheio de sonrisal”.
A insanidade de Estamira, diz Arnaldo Jabor, é uma
“linguagem de defesa diante de um mundo mais louco que ela. A sua loucura é a
narração de uma sabedoria torta, de uma anomalia que a salva de uma realidade,
esta sim, terrivelmente insana.”
Nessa
realidade, exorcizamos não apenas possessão demoníaca, mas a centelha de fé e
amor do coração das pessoas; dopamos
alienados e alienamos a lucidez; convivemos bem com o lixo debaixo do tapete da
nossa consciência de “cidadãos impecáveis” e nos livramos de pessoas como se
descartam objetos no lixo. Nessa realidade insana, a exemplo do que diz a
protagonista do filme, Estamira está em tudo quanto é canto.
'Nessa realidade, exorcizamos não apenas possessão demoníaca, mas a centelha de fé e amor do coração das pessoas; dopamos alienados e alienamos a lucidez; convivemos bem com o lixo debaixo do tapete da nossa consciência de “cidadãos impecáveis” e nos livramos de pessoas como se descartam objetos no lixo. Nessa realidade insana, a exemplo do que diz a protagonista do filme, Estamira está em tudo quanto é canto.'
ResponderExcluirPerfeito professor!
Obrigado, Joel. Um abraço.
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