Chaves para a sabedoria.

Nos tempos em que havia locadora de vídeo, vi um filme que me tocou fundo. Stealing Heaven, que na versão brasileira recebeu o título Em Nome de Deus. Quem são o diretor e os atores principais, disso não me lembro. Mas a história, que até então eu desconhecia, essa não dá para esquecer.

Baseado em fatos reais, o filme recria a história de Heloísa e Abelardo. Ela, muito jovem e em plena Idade Média, tinha conhecimento de latim, grego e hebraico. E nas palavras dele, era “muito bonita de rosto, sem rival pela extensão de sua cultura literária”. Ele, filósofo, teólogo e professor afamado. Vinha gente de longe para assistir a suas aulas em Paris.

Heloísa era sobrinha do cônego Fulbert, vigário de Notre-Dame. Devido à notabilidade do filósofo, o cônego lhe confiou a sobrinha como seu preceptor. Não imaginava, porém, que entre professor e aluna surgisse uma avassaladora paixão.

Da paixão resultou a gravidez inesperada e o casamento em segredo. Heloísa foi às escondidas para a casa de uma irmã de Abelardo na Bretanha, onde ficou até dar à luz o filho Astrolábio. Nada disso abrandou a fúria do tio de Heloísa, que se vingou de Abelardo, mandando cortar “a parte do corpo com a qual ele havia pecado.”

Em carta a um amigo, Abelardo se refere a esse fato como um monstruoso espetáculo. Ao refletir sobre ele, pensava na triste condição do eunuco perante Deus, prescrita no Deuteronômio: “o homem com testículos esmagados ou com o membro viril cortado não poderá entrar na assembleia de Iahweh.”

A extrema vergonha, mais do que a vocação – confidencia na carta – foi, a princípio, o que levou Abelardo a abandonar o magistério para se tornar monge. E convencer Heloísa– ou ordenar a esposa, como se pode deduzir das cartas entre eles – a tomar o véu em um convento, chegando a ser abadessa.

Muito antes de entrar no convento, Heloísa era estudiosa da bíblia. Não apenas lia a Sagrada Escritura, mas gostava de levantar questionamentos sobre o texto, difíceis de se responder. E Abelardo, com sua filosofia de problematização dos universais, dizia que o questionamento constante era a primeira chave para a sabedoria.

Um dos questionamentos de Heloísa, testado com a própria vida, era sobre a ética da intenção. Se um ato pode ser ao mesmo tempo legítimo e culpável. Ela não sentia culpa por amar, como diz em carta ao marido: “sou muito culpada, mas, como sabes, sou muito inocente, pois no delito, o que conta não é o que é feito, mas a intenção do agente.” Ele, porém, parecia pensar como destaca o filme: “perdoe-nos, Pai, por termos amado.”

Gosto de conversar sobre religião com meu genro. Ainda mais por ele ser questionador. Dias atrás, mostrei a ele e a minha filha um comentário do editor do meu livro, ainda no prelo, escrito em honra a Nossa Senhora, que considera o livro uma ode à espiritualidade, à pureza e à beleza da fé. Na ocasião, falamos sobre documentos da Igreja que não atribuem o título de corredentora a Maria Santíssima.

Na semana seguinte, o Vaticano publicou a Nota doutrinal Mater Populi Fidelis. Em resposta a consultas sobre a devoção mariana, a Igreja achou por bem, numa “profunda fidelidade à identidade católica”, e num “particular esforço ecumênico”, esclarecer que não se deve chamar Maria de corredentora. Pois “um olhar dirigido a ela que nos distraia de Cristo, ou a coloque no mesmo nível do Filho de Deus, ficaria fora da dinâmica própria de uma fé autenticamente mariana”. Nada disso, como observa o texto, diminui ou ofende Maria, porque “todo o seu ser reporta ao seu Senhor”.

Logo que viu na internet, meu genro me enviou um whatsapp com a notícia sobre a Nota doutrinal. E indagou se eu sabia que ela ia ser publicada. Eu respondi que não tinha como saber. Mas fiquei satisfeito em ver que um tema tratado em meu livro estava sendo objeto de tanto interesse. Fiquei triste, porém, quando me deparei com bate-bocas rasos e impertinentes sobre o assunto em redes sociais. Questionamento constante é chave da sabedoria. Mas só funciona unido às chaves do respeito e da humildade.

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