Crer na aventura do Amor

Desde menino participo de movimentos da Igreja. E nos anos oitenta atuei na Pastoral de Juventude do Meio Popular (PJMP). Na época, a vibe era da Teologia da Libertação (TL). Com suas virtudes e vícios, alguns expoentes da TL flertavam com ideias socialistas, algo inimaginável mesmo no âmbito da Doutrina Social da Igreja (DSI).

A DSI teve enorme influência no Direito do Trabalho. Sobretudo a partir da publicação da Encíclica Rerum Novarum (RN). Nela, o Papa Leão XIII alertava o mundo sobre a situação da classe trabalhadora, isolada e sem defesa, “à mercê de senhores desumanos e à cobiça dos homens ávidos de ganância, e de insaciável ambição,” condição agravada pelo monopólio do trabalho e dos papéis de crédito, quinhão de poucos ricos e opulentos, que impunham “um jugo quase servil à imensa multidão dos proletários”.

Ao mesmo tempo, a Encíclica advertia dos males da solução socialista. No dizer da RN, os socialistas “instigam nos pobres o ódio invejoso contra os que possuem”, ao defenderem a apropriação dos bens particulares pelo Estado. Com isso, fazem surgir uma “odiosa e insuportável” servidão dos cidadãos aos donos do poder. E em vez do fim das desigualdades, implantam a “igualdade na nudez, na indigência e na miséria”.

Na vibe da TL, eu me entusiasmava com leitura de livros como As veias abertas da América Latina. E mesmo sem ter lido uma linha de Gramsci, achava bonito citá-lo, para falar no tal intelectual orgânico. Também achava bonita a frase que pensava ser de Che Guevara: “Há que endurecer, sem perder a ternura jamais”. Sei não. Se naquele tempo tivesse YouTube, com o vídeo de Guevara dizendo: “fuzilamentos, sim! Fuzilamos, estamos fuzilando e seguiremos fuzilando até que seja necessário”, não me sentiria bem em me dizer cristão e citar o dito revolucionário.

Por falar nisso, Reinaldo Azevedo, em artigo publicado no site da Revista Veja, refere-se ao vídeo e à frase como “O discurso de Che na ONU e a renitente tara pelo inventor do lema do Viagra”. No mesmo site, Leandro Narloch, na coluna caçador de mitos, afirma que o militante argentino nunca disse aquela frase ou algo parecido.

Quem sabe alguém quis adornar de ternura quem defendia fuzilamentos em série. Fazer o quê? Se o inimigo era o imperialismo, Che Guevara era o herói. Nesse cenário, as multinacionais eram demonizadas. A Coca-Cola, por exemplo, era um supervilão, tipo Lex Luthor do Superman. Por isso, como costumo lembrar, nos encontros da PJMP a gente cantava o refrão: “Vai embora, Coca! Vai embora, Coca! Leva tua Fanta, deixa de nos explorar!”

Ternura mesmo eu sentia nos gestos e palavras de três bispos da época. Dom Marcelo Carvalheira, da nossa Diocese de Guarabira, recém-criada, e visitada vez por outra por Dom José Maria Pires, Arcebispo de João Pessoa, e por Dom Helder Câmara, de Olinda e Recife. Deste último guardo a ideia, também cantada por Raul Seixas, de que “sonho que se sonha só é só um sonho que se sonha só, mas sonho que se sonha junto é realidade”.

Fiquei sabendo, porém – de fonte fidedigna, que me disse isso há pouco tempo – que Dom Helder comia bem pouquinho, mas tomava Coca-Cola todo dia. Essa revelação não me fez perder a admiração por Dom Helder, semeada em meu coração nos tempos da PJMP. Mas me fez perceber a ingenuidade de cantar com fervor a musiquinha naquela época.

Se o menino é pai do homem, como diz o verso de William Wordsworth, consagrado por Machado de Assis, muito do que sou vem das influências daquele tempo. Parte delas foi sendo podada pelo exercício da autocrítica; outra parte, aprimorada pelo diálogo com diferentes visões de mundo.

Mas como diz o mesmo poema, quando adulto sou, sinto ainda o coração bater mais forte quando vejo o arco-íris. Talvez por isso não me permito viver sem esperança, conquanto já esteja na aurora da velhice. Se me abstenho da Coca-Cola – diferente do que fazia o bispo que admiro –, é para atender aos clamores do corpo; não com medo de cancelamento ideológico. E apesar das ruindades do mundo, prefiro me aventurar nas veredas da bondade. Pois como dizia Dom Helder, “esperança sem risco não é esperança. Esperança é crer na aventura do Amor.”

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