Quem tem poder para atravessar o reino da Rainha da Noite?

 


Muita gente sabe que toco sax. Mas nunca me considerei um músico. Tio Zé Pereira, esse sim, foi músico. A ele dediquei o artigo Sinais dos Tempos. Outra referência (e influência) minha na música foi meu pai. Com ele aprendi a tocar clarinete – falei disso no artigo Arrumação, mas peço licença para falar de novo – e a ler partitura. Com Irmã Carmosina Barros fiz aula de piano (além de datilografia). As de saxofone começaram há pouco mais de cinco anos, com Beto do Sax. E minha paixão por esse instrumento foi fundamental para atravessar a pandemia.

Tenho um amigo juiz que, feito eu, produz direito por vocação e ofício, e faz música por paixão. Outro dia, ele me ensinou que eu não devia dizer que não sou músico. Disse que pessoas como nós são músicos, só não somos músicos profissionais. Também gosto de refletir sobre a frase que ele escolheu para colocar no perfil de sua rede social: “a música é a alma do mundo.”

Alma é o sopro vital que anima o corpo. A filósofa Lúcia Helena Galvão a compara a um elevador. Se você leva um pisão, ela desce até o pé e se concentra na dor; se bate um cansaço, vai para o nível das energias; quando o coração se enche de saudade, ela se desloca para o andar das emoções; e quando lhe vem um pensamento altruísta, a alma sobe à cobertura das mentes elevadas.

A música como alma do mundo pode ser sentida na ópera A Flauta Mágica. Obra-prima de Mozart, com base no libreto de seu amigo Emanuel Schikaneder, a ópera estreou em Viena em 30 de setembro de 1791, poucos meses antes da morte do compositor. Faz parte do gênero singspiel, espécie de peça cantada, entrecortada por falas, canções, baladas e árias.

Ela conta a história do príncipe Tamino. Perseguido por uma serpente, ele se embrenha no Reino da Rainha da Noite. Ao ver o retrato de Pamina, filha da rainha, raptada pelo sacerdote Sarastro, ele se apaixona pela moça e jura resgatar a princesa. Junto com ele vai Papageno, o caçador de pássaros da rainha. Como armas para enfrentar os perigos, Papageno recebe um carrilhão de prata, e para o príncipe, o presente é uma flauta de ouro.

A voz da Rainha da Noite é de soprano. Dela se exige virtuosismo vocal, especialmente na famosa ária em staccato, para expressar instabilidade, cobiça e falsidade. Papageno é o barítono. Ele entoa canções populares com ajuda de uma flauta de Pã e com espírito confiante. Tamino, o tenor, e Pamina, soprano, símbolos de luz e alegria, interpretam árias românticas. E Sarastro, o baixo, com elocução mais falada, é a voz grave e solene de um sacerdote que inspira justiça e sabedoria.

Diferente de óperas encenadas apenas para reis e nobres, A Flauta mágica, desde a estreia, apresenta-se como drama musical destinado a todas as camadas sociais. Conta-se que na primeira apresentação, o público ficou calado depois do primeiro ato. Mas quando terminou o segundo, todos ficaram extasiados e chamaram Mozart ao palco, para cobri-lo de aplausos. Desde então a ópera viralizou. Quem de nós, mesmo sem saber que faz parte da obra, alguma vez já não ouviu ou cantarolou um trechinho da ária da Rainha da Noite?

Lucia Helena Aragão concebe um belo cenário dos simbolismos da ópera. Antes avisa que se alguém deseja decifrar a língua da vida, precisa compreender um pouco mais a linguagem dos símbolos. E destaca alguns traços do caráter de Mozart. No seu tempo, artistas comiam nas mão dos seus senhores e na mesma mesa dos criados destes. Mozart, porém, reivindicava independência. Compunha por encomenda, mas nunca vendeu sua música/alma.

A Flauta Mágica contém simbolismos de variadas inspirações. Da Maçonaria, na qual Mozart foi admitido em 1784, e da qual também fazia parte o amigo libretista. Mas também do antigo Egito, da mitologia grega e da alquimia medieval. E como lembra Lúcia Helena, para Aristóteles, no mito, o personagem principal é sempre o ser humano, e os coadjuvantes são fatores psicológicos, morais e espirituais personificados. Daí que todos os simbolismos da ópera anunciam, acima de tudo, a jornada de Tamino – que não deixa de ser a de todos nós – das trevas à luz, carregando trevas e luzes dentro de si mesmo.

Mozart dizia ter a morte como conselheira, e que vivia cada dia como se fosse o último. E como mostra a comovente cena do filme Amadeus, ao som do réquiem composto por ele mesmo, quando ele morreu, seu corpo foi jogado numa vala comum, fora dos muros da cidade.

Desde então, principados passaram. Tiranos que pretendem dominar pela força foram esquecidos. Mas a música de Mozart continua dentro de nós, como força vital que anima mentes e espíritos. E assim há de permanecer enquanto houver humanos habitando a terra. Pois como diz A Flauta Mágica, “pelo poder da música, andamos alegres através da noite escura da morte.”


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