Bilhete a G.


É tocante ler “Carta a D.”, de André Gorz, em que ele diz para sua amada: “Você está para fazer oitenta e dois anos. Encolheu seis centímetros, não pesa mais do que quarenta e cinco quilos e continua bela, graciosa e desejável. Já faz cinquenta e oito anos que vivemos juntos, e eu amo você mais do que nunca. De novo, carrego no fundo do meu peito um vazio devorador que somente o calor do seu corpo contra o meu é capaz de preencher.” Já eu, depois de trinta e um anos de casado, e sem medo de crítica pela falta de originalidade, atrevo-me a escrever este bilhete para a minha.

Faz algum tempo que você me reclamou para lhe escrever uma carta: “Você escreve sobre tanta coisa, por que não faz uma carta de amor para mim?!” Fiz isso em privado, com certo toque de bom humor, mas num texto para publicar, as palavras ganham tom mais sério. Só para esclarecer, na Carta a D., André Gorz pergunta a si mesmo porque sua amada estava pouco presente no que ele escrevia, se a união deles era o que havia de mais importante na vida. E explica que precisava reconstituir aquela história de amor para entender o que viveram juntos.

Nossa história também começou como amor à primeira vista. Nas primeira aulas, como seu professor na Faculdade, fiz um sinalzinho ao lado do seu nome na lista da chamada – depois você me disse que suas colegas notaram. E não foi só porque achei seu nome diferente. Mas porque fiquei fascinado pela beleza daquela menina inteligente, de calça jeans, que irradiava vivacidade. Meu sonho era ter a chance de você ser minha namorada, sem imaginar que você já tinha decidido que eu seria o seu.

Terminei o período em sua turma, mas o desejo de ser mais do que seu professor não saía da minha cabeça. Por isso nunca vou esquecer da conversa no portão da Faculdade. Sua amiga que me disse que você tinha acabado o namoro, a carona que dei a vocês até a praça no centro da cidade – logo você, que não era moça de ficar muito tempo na praça, bem ao gosto da lei doméstica do seu pai –, quando me fez aquele convite formal: “professor, apareça qualquer dia em minha cidade”. Peguei na palavra e não contei conversa. Pedi emprestado o velho Opala de meu pai para não deixar o convite esfriar, naquele inesquecível setembro.

Cheguei na cidade que não conhecia, e num tempo que não tinha waze, minha estrela guia foi uma menininha –, acho que tinha pouco mais de dez anos –, que me indicou a casa de seus pais. Sei que fui impetuoso, e hoje entendo a preocupação de sua mãe: “o que esse homem veio fazer aqui? O que ele quer com você, minha, filha? Será que ele é casado?” Mas não quis perder tempo, e logo depois das conversas protocolares, parti para o “finalmente” do pedido de namoro. A resposta ficou no ar, um “talvez” angustiante que durou quase a semana toda aguardando seu telefonema, que finalmente veio para aliviar minha ansiedade. Semana seguinte, Opala na estrada de barro – poeira e lama marcaram os caminhos para o namoro aos domingos –, e eu querendo o primeiro beijo para selar o namoro, ímpeto contido pela sua advertência: “apressadinho!”

Mas desde o início você foi decidida e corajosa. O noivado em poucos meses –, celeridade que você não recomenda a nossas filhas, mas foi importante para abrandar o rigor do seu pai e passarmos o reveillon juntos em minha cidade, mesmo com uma amiga para segurar vela –, o casamento no ano seguinte, noventa e dois tão difícil, de muita dor e alegria. O setembro da repentina morte de meu pai, o novembro com minha mãe entrando comigo na igreja para me entregar a você, com o coração dilacerado pela perda do marido que tanto amava, mas cumprindo o rito do jeito que ele sonhava. E você, que pela lei vigente ainda não tinha atingido a maioridade, precisando da assinatura do pai para poder se casar, não hesitou nem um instante.

O casamento e a nova vida vieram com decisões difíceis. Pedir demissão do emprego em sua cidade para ser dona de casa e mãe por vocação e missão. Para você, “os desafios para o enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher no Brasil” não são novidade, nem simples tema de redação. E eu preciso fazer mais do que falar e escrever sobre isso. No começo do casamento, ir morar numa cidade em que não conhecia ninguém, ficar o dia sozinha, pois eu saía cedinho para pegar o ônibus e só voltava à noite do trabalho em outra cidade, e ainda, em plena lua de mel e com esse pouco tempo para você, me trancava para estudar para o concurso de juiz, do qual só não desisti depois da primeira prova, por causa de sua insistência e apoio. Vieram os filhos, não sem a dor de perdermos o primeiro prestes a sair do seu ventre, no dia do seu aniversário. Ano seguinte, outra gravidez não a impediu de concluir seu curso superior, convivendo com minhas ausências para trabalhar no sertão.

Muita coisa se passou nesses últimos trinta e um anos, que não cabe neste bilhete. Peço a Deus que possamos viver juntos durante muito tempo ainda. E olhando para nossa história, sem receio de pecar pela falta de originalidade, posso dizer o mesmo que diz André Gorz em sua carta. Cada vez que reflito sobre nossa história de amor, mais compreendo seu significado. Foi essa história que nos permitiu nos tornar o que somos: uma pelo outro, um para a outra.

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