Zelai por nós degredados.

Quem lê o que escrevo deve ter percebido o que passo a explicar. Faz quase dois anos que comecei uma série de textos sobre Nossa Senhora. Minha ideia, desde o princípio, era que os títulos seguissem a ordem alfabética, para depois reunir tudo num ABC para Maria. Agora que cheguei ao Z, peço licença para não apenas falar sobre a mãe de Jesus, mas conversar com ela.

Meu pai não gostava de dormir sem alguém por perto. Quando tinha pesadelos, às vezes a gente precisava acordá-lo. Ele dizia que para se livrar desses e de outros males, rezava a salve-rainha. Ainda hoje, nas minhas inquietações, lembro-me disso e rezo essa oração.

Confesso que achava a salve-rainha deprimente. Um padre, que foi nosso professor e ensinou a gente a cantar a salve-rainha em Latim, também enxergava melancolia ao se falar em degredados filhos de Eva, gemendo e chorando num vale de lágrimas. Resolvi, então, ir atrás das origens da oração e saber o porquê daquela aparente lamúria.

Fiquei sabendo que por volta do ano 1.050, ela teria sido criada pelo monge Hermano de Reichenau. Mas também que alguns estudiosos põem em dúvida sua autoria. Falam em registros históricos da oração antes de se tornar famosa na melodia composta pelo monge. Seja como for, é inspiradora a história de Hermano.

O que a Medicina de então podia fazer por uma criança com paralisia cerebral? Pesquisas recentes suspeitam que o caso fosse de esclerose lateral amiotrófica. Coube então à mãe consagrar o filho à Nossa Senhora, antes de ser levado ao mosteiro, de liteira, por causa da deficiência.

Apesar de tudo, do menino que parecia sem futuro surgiu um homem notável. Fluente em várias línguas e compositor de renome, escreveu obras sobre ciência da música, matemática, astronomia e história. E no final da vida, já cego, compôs a Salve Rainha, talvez a mesma que o padre nos ensinou a cantar.

Não bastasse as limitações do corpo, o mundo no tempo de Hermano gemia e chorava muitas dores. Calamidades naturais, epidemias, fome e miséria assolavam a Europa. Legiões de desterrados ocupavam povoados, às vezes com saques e mortes. Daí se compreende que a salve-rainha contenha tantas palavras de sofrimento. Mas ao mesmo tempo é um brado de esperança.

Gregório de Matos expressa bem isso, no poema Salve Rainha à Virgem Santíssima, que já começa dizendo:

“Salve, divina beleza,
Salve, dos anjos princesa,
e dos céus, salve rainha.
Sois graça, luz, e concórdia
entre os maiores horrores,
Sois guia de pecadores,
Madre de misericórdia.”

O poema lembra que a Senhora quer nos iluminar. Mas deixa claro que para isso não há outro caminho senão seguir vosso Filho, verdadeira luz que ilumina os seres humanos. Que para a salvação não há outro meio a não ser abrir a alma ao amor de Cristo. Ou no dizer do poeta, deixarmos que seja dos nossos corações o que um dia foi do vosso ventre.

Faz muito tempo que saímos da Idade Média, na qual Hermano viveu e morreu. Há quem chame aquele tempo de era das trevas, como se trevas não existissem em todos os tempos. Clarões da ciência não impedem o uso de inteligência artificial em artefatos de guerra, como não evitaram que Hiroshima inaugurasse o pós-moderno, fazendo o pai da bomba recitar: “agora eu sou a morte, a destruidora de mundos.”

Num mundo assim, tecnologias reluzentes são incapazes de conter os cavaleiros da peste, da guerra, da fome e da morte. Num mundo assim, ainda se louvam tiranos que esmagam pessoas, sufocam liberdades, fazem degredado quem deveria ser irmão. Num mundo assim, ó advogada nossa, não se pode lutar contra as trevas sem o poder da oração.

Tudo isso me ensinou que a salve-rainha não é uma reza medieval deprimente. Mas confesso à Senhora que muitas vezes não sei orar como convém, embora também saiba que rezar não é só

recitar frases bonitas. Mais do que com a boca, se reza com o coração. E como ensinou Santa Terezinha do Menino Jesus, orar pode ser olhar para o céu, e a oração, um grito de amor e gratidão no meio da provação ou da alegria.

Por isso peço à Senhora, que sois da vida esperança, zelai por nós degredados. Para que, como disse o poeta:

“tenhamos esta alegria,
esta doçura tenhamos,
pois que tanta em vós achamos,
ó doce Virgem Maria.”

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