Xis dos mistérios

 

Eu que apreciava matemática, achava graça em descobrir o valor do xis. Na adedonha, nem me fale! Que letrinha difícil de se encontrar nomes com ela! Bem capaz de ser por isso que no abc de Maria, quando se chega ao xis, em vez de uma palavra diferente começada pela letra, esta é repetida para cantar “xis dos mistérios”. Em qualquer situação, o xis tem um quê de incógnita. Mas não se deve pensar em mistério apenas como coisa desconhecida. Não é um quarto escuro em que nada se vê. Mistério se revela até o quanto se pode revelar.

Nós católicos meditamos mistérios rezando o rosário. A cada ave-maria, é como se entregássemos uma rosa a Nossa Senhora. De flor em flor, ao todo cento e cinquenta – mesmo número dos Salmos de Davi –, terminamos ofertando a ela uma coroa de rosas. E a cada dez ave-marias, como lembra o Papa Pio V, intercalamos um pai-nosso, “com determinadas meditações que ilustram toda a vida de nosso Senhor Jesus Cristo.”

A história do rosário mistura liturgia com devoção popular. A saudação angélica da anunciação já fazia parte da missa do quarto domingo do advento, desde os primeiros séculos da era cristã. Mas a repetição da ave-maria como uma ladainha só se espalhou no Ocidente a partir do século XII. Na época havia a prática de se rezar cento e cinquenta pai-nossos, em vez do saltério de Davi, para facilitar a oração de monges que não sabiam ler ou que tinham pouco estudo. Da mesma forma, a repetição das ave-marias ajudava a reza do povo.

Como muitas histórias humanas, a do rosário é enriquecida pelo colorido da lenda. A que envolve São Domingos foi espalhada por Alano de la Roche, e segundo Ennio Domenico Staid, se a narrativa não pode ser aceita em seu teor absoluto, também não merece ser tratada como dado histórico inteiramente falso.
Conta-se que no ano de 1214, quando o então frei Domingos travava uma batalha espiritual contra hereges em Toulouse, a Virgem Maria apareceu a ele e lhe apresentou o rosário como arma poderosa para conversão do mundo. Depois da aparição, os sinos da igreja tocaram sozinhos, houve vendaval, tremor de terra e raios. Dizem até que uma imagem de Nossa Senhora levantou os braços três vezes. Mas tudo voltou ao normal quando o religioso começou a rezar o rosário, o que levou a conversão de muita gente na cidade.

Nos séculos seguintes surgiram vários saltérios marianos. Às séries de pai-nossos e ave-marias foram acrescentadas referências a acontecimentos do Evangelho, em forma de refrão ou cláusulas. Alguns rosários chegavam a ter trezentas cláusulas, até que o dominicano Alberto de Castelo, em 1521, escolheu quinze mistérios para meditação pelos devotos.

Em 1569, o Papa Pio V publicou a bula “Consueverunt Romani Pontifices” na qual, no dizer do Papa Paulo VI, de certo modo definiu a forma tradicional do rosário. Na bula, Pio V lembra que seus predecessores, quando estavam aflitos, imploravam a assistência divina com súplicas e ladainhas. E refere-se ao rosário como uma forma simples, piedosa e acessível de oração.

O Papa João Paulo II também dedicou uma Carta Apostólica ao rosário. A “Rosarium Virginis Mariae”, de 2002, começa dizendo que o rosário se enquadra no caminho espiritual de um cristianismo que, mesmo depois de dois milênios, nada perdeu de seu frescor original. Destaca que apesar de sua fisionomia mariana, o rosário é essencialmente cristológico. Com o rosário, segundo o Papa, “o povo cristão frequenta a escola de Maria para deixar-se introduzir na contemplação da beleza do rosto de Cristo e na experiência da profundidade do seu amor.”
 
Na mesma Carta, João Paulo II sugere que além dos gozosos, dolorosos e gloriosos, sejam inseridos no rosário os mistérios luminosos. Com isso, o total de ave-marias passa de cento e cinquenta para duzentas. E a reza separada de cada conjunto de mistérios transforma o terço em um quarto, pelas contas de fração da matemática. A inserção, porém, é deixada à livre valorização das pessoas e comunidades. Com ou sem ela, o rosário continua sendo contemplação dos mistérios de Jesus Cristo, que englobam os de sua Mãe e os nossos.

Contemplação, porém, não há, se a reza é feita de qualquer jeito ou nas carreiras. São Luís de Montfort já alertava que rezar a Deus com distrações voluntárias é falta de respeito. Para ele, como podemos querer que Deus nos ouça, se nós mesmos não nos ouvimos? E sobre rezar devorando as palavras, o santo assim dizia: “não se cumprimentaria desse modo ridículo ao último dos homens, e no entanto se imagina que Jesus e Maria se sentem honrados com isso!”

Honrar Jesus e Maria nas contas do rosário faz parte da espiritualidade do povo. Mas é bom evitar os exageros da devoção popular e, mais ainda, a manipulação do sagrado. Não há honra em transformar Nossa Senhora, para me valer de expressões do Padre Salvatore Perrela, numa “figura popularesca, capturada nas banalidades da existência”. Não há honra em transformar o xis dos mistérios em “Barbie da fé.”

Comentários