Umas e outras nas calçadas da fé e da vida.


Já confessei publicamente que meu encontro com o direito foi obra do acaso. Meus devaneios de pré-vestibulando sempre associavam esse curso a gravata e Vade Mecum, coisas de que eu queria distância. Mesmo com minha timidez de grau intenso, achava que minha praia era a dos descolados de bermuda e chinelão. Mas as estradas da vida me ensinaram que nem sempre o hábito faz o monge.

Primeiro deixei para trás o sonho de ser sociólogo. A oportunidade do primeiro emprego e as poucas opções perto de casa me fizeram trilhar pelo mundo das Letras, embora meu coração, tocado pelos mistérios do sagrado, ainda acreditasse na sociologia como antídoto para alienação da fé. Só depois, impelido pelos empurrões retóricos do meu irmão, segui na direção do direito. No início andei um tanto sem rumo. Mas depois me deixei seduzir pelos caminhos do mundo jurídico, o que me fez perceber que, como na letra da canção “Umas e Outras”, a gente tem muita calçada para caminhar pela vida.

Naquela canção, Chico Buarque nos apresenta a duas mulheres. Uma nunca tem sorriso, para melhor se reservar. A vida, para ela, é um rosário de lágrimas. Por isso, vez por outra ela se senta para derramar seu pranto, na sofrida espera para entrar no paraíso. A outra não dá muita importância se não tem um paraíso a esperançar, pois já forjou seu sorriso e fez disso profissão. Mas como sua vida é uma dança em que não se escolhe o par, às vezes ela se cansa, e também senta um pouco para chorar. E toda madrugada, o acaso faz com que elas se cruzem pela rua, uma olhando para a outra com a mesma dor.

Penso que um olhar sincero entre as pessoas, tão perto na rua e tão longe na vida, ajuda a construir sociologias abertas ao amor e religiões que não sejam indiferentes às dores do mundo. Talvez a justa reflexão sobre umas e outras permita que as pré-compreensões de cada uma não se fechem em preconceitos mútuos. E nessa troca de olhares, cabe meditar sobre o lugar de Maria, não só na missão social da Igreja, mas na história da salvação humana.

A Mariologia Social pode ser uma busca desses olhares. Seguir os passos de Maria para iluminar as andanças do compromisso social do cristão. Ela não é o centro, mas é central nesse caminho. Por isso é tão importante aproximar-se dela para que as pessoas sejam verdadeiramente seguidoras do seu Filho. Afinal, como bem diz Auguste Nicolas, o culto à Nossa Senhora é “depois da cruz de Jesus Cristo, o meio mais poderoso da regeneração do mundo pelo Cristianismo.”

Deixar-se conduzir por Maria implica reconhecer que ela é o mais perfeito modelo humano de seguidora de Jesus. Nem é preciso pedir que ela passe na frente, pois ela nunca esteve atrás. Daí o cuidado de não querer fazer de Nossa Senhora uma espécie de Maria vai com as outras, para satisfazer caprichos devocionais ou fazer proselitismo político. Tirar as sandálias contaminadas por nossas mesquinhezas é sempre uma boa prática para se caminhar no solo sagrado.

Outro dia, fiquei indignado com um texto de um conhecido senador, compartilhado como se fosse o suprassumo da interpretação de passagens bíblicas por um cristão. Nem falo das impropriedades no uso da fala coloquial para aproximar as mensagens cristãs do nosso dia a dia, pois a atualização da linguagem, quando usada com sabedoria, é uma virtude hermenêutica. Mas reduzir Jesus, que para quem é cristão é nada menos que Deus, a um militante de esquerda, forjado à imagem e semelhança do político, isso sim, é uma lástima!

De igual modo, as reflexões da Mariologia Social não podem ser um projeto forçado de simpatizantes da Teologia da Libertação, entre os quais eu me incluo, com todas as autocríticas que faço. Como lembra Clodovis Boff, “o mistério de Maria é tão profundo e luminoso que continua a emitir luz e energia séculos afora.” E se o texto sagrado proclama que todas as gerações a chamarão bem-aventurada, essa bem-aventurança está muito acima de contorcionismos devocionais e manipulações político-ideológicas. Ela inspira a caminhada de pessoas que derramam seu pranto e riem seu riso nas calçadas da fé e da vida. Caminhada para salvação que já começa neste mundo, mas não deixa de esperançar o paraíso governado pelo Deus Amor.

Comentários