Teologia da Libertação e Maria, mulher pobre, forte e guerreira.


 

No chão da sala, uma esteira de palha. Na parede, um poster de Ernesto “Che” Guevara, já transformado em ícone da cultura pop. Nos meus tempos de república de estudante, a gente, ou não tinha ouvido falar, ou não dava ouvidos ao fato de Guevara ter se gabado na ONU, dos fuzilamentos sumários que tinha praticado –, conta-se que até por homofobia e intolerância religiosa –, como instrumento de luta às mortes causadas pelo imperialismo, pois o que imperava em nossa mente era a ideia de que ser jovem e não ser revolucionário era mesmo contradição genética.

Naquele tempo, outra coisa que fazia nossa cabeça era a Teologia da Libertação. Não fazia sentido falar em salvação da alma sem que houvesse respeito a dignidade dos mais pobres, com garantia dos direitos humanos no âmbito da sociedade e da cultura, como diz a Evangelii Nuntiandi, do Papa Paulo VI. Afinal, a verdadeira evangelização não pode separar a fé da vida.

Mas houve distorções nessa forma de viver o Evangelho. A Teologia da Libertação, como reconhece Paulo VI, repercutia a voz de milhões de filhos e filhas da Igreja, de povos que lutavam para superar injustiças do neo-colonialismo econômico. Porém muitos dos seus defensores limitavam a mensagem evangélica a um projeto temporal, manipulado por sistemas ideológicos e partidos políticos. Nessa visão deturpada, o Jesus histórico era uma espécie de militante revolucionário.

Com Maria de Nazaré, a história era diferente. Reproduzindo a concepção machista de confinar a mulher ao espaço privado, predominava a imagem açucarada de Nossa Senhora, como doce mãe, mulher recatada, rainha distante. Era como se ela não tivesse sido uma mulher pobre, forte e guerreira, bem próxima de muitas que conhecemos.

Maria, como lembra Paulo VI, longe de ser uma mulher submissa e de religiosidade alienante, foi capaz de exaltar a Deus como “vingador dos humildes”, que despacha os poderosos de mãos vazias. E no dizer da Lumen Gentium, sendo a “primeira entre os humildes e os pobres do Senhor”, foi uma mulher que, como destaca a Marialis Cultus, conheceu de perto a pobreza e o sofrimento, a fuga e o exílio, igual a milhões de outras mulheres para quem a igualdade de gênero é um horizonte distante.

Até João Paulo II, que combateu os excessos da Teologia da Libertação, traçou o perfil de Maria como guerreira. Na Redemptoris Mater, o “pisa na cabeça da serpente” é mais do que um chavão devocional. É a certeza de que Maria foi colocada no centro de uma inimizade com os males do mundo, numa batalha que não é só espiritual. E no final da Evangelium Vitae, o Papa confia a ela, como aurora do mundo novo, a causa da vida, não só das crianças impedidas de nascer, mas também dos pobres para quem se torna difícil viver.

E é na vida dos pobres que Maria sempre este presente na esfera pública. Jeroslov Pelikan observa que Maria é o nome de mulher mais pronunciado no mundo ocidental. É o nome que os casais mais escolhem para batizar as filhas, ou como diz Andrew Greeley, ela é o símbolo cultural mais poderoso e popular dos últimos dois milênios. Não é à toa que até um pensador protestante, como Friedrich Foester, reconheça que para a cultura humana, Maria supera de longe tudo o que a técnica moderna fez pelo mundo.

Mas é preciso ter cuidado para não reduzir o papel de Maria de acordo com nossas ideologias. Como lembra S. Galilea, se Maria tem lugar na libertação dos pobres, é por sua capacidade de inspiração evangélica e humanizadora. Maria, a exemplo de Jesus, não era uma militante, nos moldes que entendemos hoje. O seu papel de esmagar as cabeças das serpentes do mundo é muito mais profundo, pois ela nos ensina que “a verdadeira libertação e liberdade não é tornar-se rico, nem agir insolidariamente, nem buscar poder para abusar de outros mais fracos”.

Por isso, nenhuma teologia de inspiração cristã pode aceitar a libertação pela via dos fuzilamentos. Da mesma forma, não é coerente com o Evangelho qualquer prática devocional alienada da vida. “Dai-lhes vós mesmos de comer”, exorta a Campanha da Fraternidade, que pede para Maria interceder para acolhermos seu Filho em cada pessoa, principalmente nos abandonados, esquecidos e famintos.

Ao mesmo tempo, qualquer teologia de inspiração cristã deve nos conduzir para um mundo em que os espaços sociais, políticos e religiosos não sejam dominados pelos homens. Mundo que não enclausura as mulheres na esfera privada, como fazemos muitas vezes com Maria. Mundo que tem consciência de que só o Filho de Maria é o caminho para a Salvação, que passa pela libertação das injustiças dos reinados dos homens, mas tem como destino final o Reinado de Deus.

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