Rainha da paz, da ternura e esperança

Este ano tive um réveillon diferente. Meu filho, internado no hospital, com a mãe de acompanhante. Eu, sozinho, vendo pela janela a queima dos fogos, e pensando como a vida da gente não cabe no planejado. Olhei para a Vila Olímpica, e lembrei da morte do rei Pelé. Tinha visto na TV que seu milésimo gol podia ter sido o que ele fez bem perto de onde eu estava. Também me veio à mente a morte do Papa Bento XVI, o único do nosso tempo que, reconhecendo a falta de vigor do corpo e do ânimo, abriu mão de governar a barca de São Pedro.

No livro Bento XVI, o último testamento em suas próprias palavras, Peter Seewald traz uma série de entrevistas com o Papa emérito. Sobre a renúncia, o jornalista perguntou como o Papa se sentiu ao ficar, de um dia para o outro, privado de poder e quase preso por trás dos muros do Vaticano. Bento XVI respondeu que nunca considerou o poder como uma força dele, mas uma responsabilidade, algo pesado, que faz a pessoa se perguntar todos os dias: “eu dou conta?” E sobre a aclamação das massas, disse que sempre teve consciência de que as pessoas não festejavam “aquele pobre homenzinho lá”, mas quem ele representava.

Em outro trecho, o livro traça um paralelo entre João Paulo II e Bento XVI. Observa que o primeiro trazia a veia do ator que tinha sido, homem dos gestos que buscava os palcos, enquanto o outro era o tímido homem da palavra, que dispensava os efeitos especiais e tinha como principal tarefa manter a Palavra de Deus “em sua grandeza e pureza, contra todas as tentativas de ajuste e diluição.” Outra diferença, segundo o livro, é que Bento XVI era erudito e cristocêntrico, e João Paulo II era místico e mariano.

Mas como Maria é mãe não apenas de quem é mariano, o Papa Francisco confiou Bento XVI à Nossa Senhora, para acompanhá-lo na passagem deste mundo para as mãos de Deus. Naquela homilia do dia mundial da paz, o Papa também destacou dois gestos simples dos pastores ao encontrarem Maria, José e o menino deitado na manjedoura: ir e ver. Em vez de esperar sentados que as coisas mudem, interrogar a nós mesmos: “Eu, neste ano, aonde quero ir? A quem vou fazer bem?” E abrir bem os olhos para o que realmente importa: Deus e os outros.

Também pediu para rezarmos pelos que sofrem e não têm força de rezar, pelas vítimas das guerras em tantas partes do mundo e que, naqueles dias que eram para ser de festa, padeciam na escuridão e no frio, na miséria e no medo, sufocados pela violência e indiferença. Onde elas e nós encontraremos a paz? Certamente não em um mundo, real ou virtual, que nos deixa anestesiados e insensíveis.

A homilia destacou ainda um dado de fé, que é uma boa nova: O Deus Filho tem uma Mãe. Pela encarnação, Deus envolveu-se para sempre com a nossa humanidade. Nascido de Maria, mostrou que nos ama não apenas lá do alto. E sendo Maria a mulher que trouxe ao mundo o Príncipe da paz, nada mais justo que ela seja vista como rainha.

Ocorre que a realeza de Maria às vezes é interpretada incorretamente. O primeiro erro, como observa Stefano De Fiores, é partir do conceito político e histórico de realeza, para dele derivar a grandeza de Nossa Senhora. É compreensível a comparação com o prestígio da rainha-mãe, a exemplo do que a Bíblia narra sobre Betsabéia. Como esposa do rei Davi, ela se prostra diante do marido. Mas quando seu filho, Salomão, torna-se rei, é ele que se prostra diante dela. No entanto, o texto sagrado jamais relaciona Maria ao poder político, nem à prepotência de reis e rainhas de então.

Evitar esse erro é ainda mais importante por vivermos numa época de cultura democrática, em que a opulência dos palácios reais estão cada vez mais longe da realidade do povo. No caso do Brasil, esse distanciamento é maior, por não termos em nossa história referências de reis e rainhas, a não ser quando damos esses títulos a alguns ídolos, como demos ao rei do futebol.

Além disso, é bom não esquecer, como ensina Aristide Serra, que no plano de Deus, reinar é servir, e servir é reinar. No plano salvífico, Maria tornou-se rainha porque se fez serva do Senhor. Esse reinado/serviço continua no céu, assim como no céu Jesus continua sendo o único Salvador. Nossa fé não admite vacância cristológica, nem devoção que não seja cristocêntrica, seja neste ou no outro mundo. Como resume De Fiores: “Jesus não deixou a terra para transformar-se em ‘messias honorário’, já que ele permanece como o único mediador fora do qual não existe salvação.”

Nesse cenário, a realeza de Maria não combina com ostentação e instrumentalização da fé. Por isso, como lembra De Fiores, não parece adequada a acumulação de milhares de diamantes para coroar a imagem de Nossa Senhora, como foi feito em Saragoça. Muito menos, como diz Maria Warner, instrumentalizar a soberania de Nossa Senhora, fazendo pensar que bondade é sinônimo de poder e riqueza.

Maria é rainha, independente da quantidade de diamantes incrustados nas coroas de suas imagens. Ela é a Rainha da paz que, como lembra a homilia do Papa Francisco, nos abençoa com seu Filho nos braços, trazendo ao mundo a ternura de Deus feito carne, e nos dando a esperança que tanto precisamos, tal qual a terra precisa de chuva.

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