Queda do homem e Nova Eva

Mais do que Adão, Eva tem sido acusada de cúmplice da serpente. Para Santo Ambrósio, ela devia ser considerada inteiramente responsável pelo delito original, sendo justo que aceitasse, como seu soberano, o homem a quem teria levado a pecar. Não sei se a ideia do santo se inspirou num trecho da Primeira Carta a Timóteo. 

Ao dar instruções sobre a oração litúrgica, assim diz a Carta: “Eu não permito que a mulher ensine ou domine o homem. Que ela conserve, pois, o silêncio. Porque primeiro foi formado Adão, depois Eva. E não foi Adão que foi seduzido, mas a mulher que, seduzida, caiu em transgressão. Entretanto, ela será salva pela sua maternidade, desde que, com modéstia, permaneça na fé, no amor e na santidade.”

Não quero aqui atiçar as brasas da polêmica sobre o texto. Muito menos acusar seu autor de misógino. Não é adequado julgar padrões sociais do passado a partir de conceitos atuais. Mas não deixa de ser irônico que quem escreveu aquelas recomendações, talvez a pretexto de defender tradições antigas, não tenha percebido que o Mestre, a quem dizia seguir, trouxe um jeito completamente novo de lidar com as coisas do mundo, incluindo os preceitos religiosos.

Também não acho que o melhor caminho seja o contorcionismo interpretativo. Considerar que o redator da Carta se referia apenas a viúvas jovens, referidas na mesma Carta e na Segunda a Timóteo, como pessoas desocupadas, faladeiras e indiscretas, que andavam de casa em casa, sem ter o que fazer, podendo cair na lábia de falsos profetas, o que as tornaria incapazes de atingir o conhecimento da verdade. Para elas, o remédio, segundo o texto sagrado, seria arrumar o que fazer, casando-se e tendo filhos.

Do mesmo modo, penso que a melhor saída não é, no intuito de libertar Paulo do antifeminismo – para me valer da expressão de José Bortolini –, dizer simplesmente que a Carta pertence às chamadas pseudopaulinas. Ou seja, ela estaria vinculada a chamada “escola paulina”, mas Paulo não a teria escrito. Isso poderia nos afastar de uma possível contradição com outros textos paulinos, como o da Carta aos Gálatas, que diz não haver mais diferença entre homem e mulher, pois todos são um só em Jesus Cristo. Mas isso só reforçaria o caráter discriminatório das recomendações a Timóteo, procurando outro cristão para enfiar a carapuça, como sendo o verdadeiro redator de palavras que fundamentam a submissão da mulher numa grotesca interpretação do texto da criação, ainda mais quando a Carta aos Romanos fala da entrada do pecado no mundo por meio de Adão, e não de Eva
Todavia, mesmo considerando a cooperação de uma mulher para o mundo abrir as portas ao pecado, é do ventre de outra virgem nascida sem pecado que nos vem o Redentor. Essa visão de Maria como a Nova Eva tem suas raízes no texto do Evangelho de Felipe, considerado apócrifo, onde se lê: “Adão deve sua origem a duas virgens, isto é, ao Espírito e à terra virgem. Por isso Cristo nasceu de uma Virgem, para reparar a queda que ocorreu no princípio.”

O tema Eva-Maria, como explica René Laurentin, aperfeiçoou-se ao longo dos tempos. Justino, no Diálogo com Trifão, teria sido o primeiro a explicitá-lo. A partir da Anunciação, contrapõe Eva, que deu à luz desobediência e morte, a Maria, que concebeu fé e alegria: “Cristo feito homem por meio do Espírito Santo.” Irineu foi mais além. Mais do que paralelismo, a concepção da Nova Eva passou a ser vista como consequência necessária de uma ideia essencial: “o plano salvífico de Deus não é simples reparação da primeira obra. É recomeço desde a origem, regeneração mediante a cabeça, recapitulação em Cristo.”

Esquecido por algum tempo, esse tema passou a ser rediscutido após a Contra-Reforma. Mais do que uma comparação, temos diante de nós um caminho para compreensão do plano salvífico de Deus, no qual Maria tem papel importante. A Nova Eva apresenta-se como mãe do Novo Adão segundo o Espírito. E como comenta Laurentin, “se o feminismo indigna-se com a narração do Gênesis em que a mulher é tirada do homem, o novo Adão inverte essa tese, nascendo de mulher sem cooperação viril, porém através da obra transcendente de Deus.”

Um tema como esse requer cuidado na sua discussão. Por isso a doutrina do Vaticano II, na Lumem Gentium, prefere não adotar o título de Maria como co-redentora, o que poderia gerar equívocos de interpretação, quem sabe até obscurecer a eficácia da redenção realizada por Jesus, o único mediador, contrariando a Sagrada Escritura e ofendendo nossa fé. 

Todavia, também não é justo desprezar o modo todo especial como Maria cooperou na obra do Salvador. Não bastasse o íntimo laço de parentesco entre mãe e filho, ela livremente se tornou serva do Senhor, elevando-se entre os filhos de Deus, como primeira e mais qualificada pessoa humana no contexto da Nova Aliança. E se essa cooperação nada acrescenta ou retira à obra do seu Filho, ela mesma se torna o primeiro fruto da eficácia da redenção por Ele realizada.

Feliz Natal de Jesus Cristo, nascido da Virgem Maria!

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