Primeira pessoa da história


Faz mais de dez anos que escrevi a respeito da decisão do Supremo Tribunal Federal sobre interrupção de gravidez de anencéfalo. O texto, Comparar anencéfalo a natimorto é coisa de mentecapto?, publicado no blog mitos e metáforas, é anterior a uma mudança no Catecismo da Igreja Católica, que na antiga redação do parágrafo 2267 ainda admitia a pena de morte.

Na decisão do Supremo há uma afirmação que particularmente questiono. Data vênia. Depois de dizer que para o Conselho Federal de Medicina, anencéfalos são natimortos cerebrais  – o que condiz com nosso critério jurídico para o fim da personalidade –, o Ministro Relator conclui que um anencéfalo jamais se tornará pessoa.

Pessoa em que sentido? Se for no jurídico, podemos deduzir que a decisão mudou de uma vez por todas o critério médico-legal de investigação do início da vida pela entrada de ar nos pulmões? E se, por exemplo, uma mãe, mesmo autorizada pela decisão do STF, decide não interromper a gravidez, dá a luz a um anencéfalo, ele respira por alguns minutos antes do coração parar de bater, ainda assim, por causa da decisão do STF, aquele ser não chegou a ser pessoa de acordo com o Código Civil?

Não é fácil definir pessoa. Normalmente se diz que é o ser humano considerado em sua individualidade, dotado de razão e de querer. Mas não se pode negar a qualidade de pessoa a quem não tem plena consciência de si. Pessoa é um “eu” único que, como lembra a Declaração Universal dos Direitos Humanos, nasce livre e igual em dignidade e direito, e que deve interagir com outras pessoas em espírito de fraternidade. Contudo, quem não tem discernimento também é pessoa, titular de direitos, ainda que não possa exercê-los por si mesma.

Refletir sobre o que é uma pessoa é ver o ser humano não apenas como aglomerado de átomos e moléculas, pedacinho do cosmos que não explicamos completamente. É tentar enxergá-lo como sujeito do seu destino, ideia construída no correr dos séculos, que já se desenhava no pensamento estoico de consciência pessoal e livre, e que depois revestiu-se do manto jurídico, com a atribuição de personalidade civil ao cidadão no império romano.

Todavia, a noção de pessoa que temos hoje só foi possível quando a filosofia grega e o direito romano se encontraram com a reflexão cristã. Os Pais da Igreja deram sua contribuição quando discutiram a natureza de um Deus único em três pessoas. E a metafísica cristã nos conduziu à concepção de “pessoa humana”, com igual dignidade, como criatura de Deus, chamada para uma salvação para a qual contribui com o seu sim ao Criador.

Dentro dessa concepção, faz sentido dizer, como diz Xavier Pikaza, que Maria é a primeira pessoa da história. Igualzinho a todos nós, Maria é corpo e alma, animalidade e pensamento, diferente das pessoas divinas da Santíssima Trindade. Mas pela graça de Deus, ela se realiza como pessoa no sentido mais profundo da palavra: “faz-se dona de si mesma e plenifica sua existência em caminho de abertura para o divino.”

Na visão cristã, Deus cria homem e mulher para a plena realização como pessoas em comunhão com o divino, ou seja, para a salvação. Mas por não criá-los como fantoches, permite que possam escolher outro caminho. E Maria, com plena liberdade torna-se serva do Senhor, para viver sua vida de mulher, mãe e irmã de pessoas a caminho da salvação, desenvolvendo todas as potencialidades humanas.

Como mulher, a feminilidade de Maria é singular. Ela é esposa de José, mas sendo Virgem Mãe, não se limita a complemento feminino do marido. Ao dar o sim ao emissário divino, apresenta-se como dona de sua palavra e de sua vida, sem precisar ser tutelada por ninguém, como ainda hoje são as mulheres na cultura do país da Copa. E mesmo sendo Mãe do Filho de Deus, não deixa de ser discípula de seu Filho, além de mãe e irmã dos seguidores de Jesus.

As instituições humanas são necessárias, porém precárias. Chamar um órgão de poder humano de Supremo não significa que ele não possa ter suas decisões questionadas. Até a infalibilidade papal é restrita a verdades divinamente relevadas, e não abrange questões como a  pena de morte, admitida pelo Catecismo da Igreja Católica até 2018, quando teve sua redação alterada.

Uma coisa, porém, é certa. Mesmo que o conhecimento humano seja insuficiente para analisar a identidade pessoal de Maria, se compreendemos a noção de pessoa na perspectiva cristã, não há dúvida que ela é verdadeiramente a primeira “pessoa humana” da história. Pois como resume Mercedes Navarro, “Maria foi o que quis ser; foi o que Deus lhe pediu que fosse; foi também mais do que sonhou ser.”

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