Lourdes e a canção de Bernadette aliviam as dores o mundo

Paulo tinha um espinho na carne. Não se sabe ao certo que espinho era esse. Mas ele dizia que vinha da parte de Satanás. Eu, que não me comparo ao Apóstolo, peguei chicungunha faz mais de um mês, e não creio que ela tenha vindo da parte de Deus. Até agora as dores não querem abandonar minhas juntas. Chego a pensar que é uma prévia do logo mais da velhice. Afinal, Sêneca disse, e o Papa Paulo VI assinou embaixo, que velhice é de certo modo uma doença. Imagine, então, quem nem precisa envelhecer para sofrer na carne as dores do mundo.

Quando Bernadette Soubirous nasceu, em 1844, o pai era dono de um moinho, na cidade de Lourdes, sul da França. Dizem que ele era um homem bom. Não fazia questão de entregar sua farinha a quem lhe pedisse emprestado. Se é verdade, porém, que quem empresta nem para si presta, farinha vai, farinha não vem, ele terminou perdendo o moinho. Sem ter onde morar, teve que se abrigar com a família numa masmorra abandonada. Para piorar as coisas, foi preso sob acusação de furto de farinha. O depoimento do padeiro, vítima do crime, dizia simplesmente: “a sua miséria me fez pensar que ele podia ser o autor do furto.”

Desde menina Bernadette era doentinha: cólera nos primeiros anos de vida, asmática desde que se entendeu por gente. Aos quatorze anos não tinha sido alfabetizada e tinha dificuldade de aprender as lições do catecismo para fazer a primeira comunhão. Mas em 11 de fevereiro de 1858, sua vida mudou completamente. Franz Werfel conta essa história no livro A Canção de Bernadette.

Conta o livro que naquele dia, Bernadette foi com uma irmã e uma amiga, pegar lenha perto de Massabielle, “lugar de cheias, de ossadas, de seixos, de porcos e de cobras”, que as pessoas evitavam. Depois de ouvir o barulho do vento, que balançava uma roseira, mas não a folhagem de um álamo vizinho, ela olhou para uma gruta e não acreditou no que viu. Esfregou os olhos para ter certeza de que não era uma alucinação. A visão era de uma senhora elegante, como uma dama da alta sociedade. Mas diferente da moda da época, a jovem não usava espartilho, nem crinolina, aquela anágua em forma de gaiola, que causava acidentes e até mortes de mulheres, quando não calculavam a área da saia, e se aproximavam das chamas das lareiras, cozinhas e velas.

Bernadette se lembrou de ter assistido a um casamento e comparou o traje daquela desconhecida a um vestido de noiva. A jovem, porém, não trazia os cabelos frisados com grampos, em voga na sociedade de então, e alguns anéis de seus cabelos castanhos escapavam-lhe do véu. Uma faixa azul lhe prendia a cintura. A dama estava descalça, com pés sem o mínimo tom vermelho ou rosado, como se nunca tivessem pisado o chão, e tinha uma rosa de ouro sobre cada um deles, que Bernadette não sabia dizer se era obra da mais fina joalheria ou era simplesmente pintada.

Diante daquela beleza sem igual, que iluminava não uma suntuosa catedral, mas uma gruta imunda, Bernadette não lhe sentia pesar a pobreza extrema, nem o sofrimento de lutar noites inteiras contra a falta de ar. Sem se atrever a dirigir a palavra àquela dama, Bernadette tirou o terço do bolso e rezou diante da senhora. As mulheres de Lourdes, observa Werfel, sempre portavam um terço que pudessem “debulhar”. Ainda mais quando eram mãos humildes como as dela, acostumadas ao trabalho pesado, que não sabiam ficar paradas. Para aquelas mulheres, a prece de mãos vazias não tinha o mesmo valor, e rezar o rosário era como um trabalho divino, como alguém que, com uma agulha invisível, tricotasse as contas das Ave-Marias. 

As aparições se repetiram em outros dias, sendo a última em julho do mesmo ano. E somente em 25 de março, depois de Bernadette perguntar várias vezes pelo seu nome, a dama lhe respondeu: “Eu sou a Imaculada Conceição.” Nas aparições, a Senhora também disse: “Não te prometo fazer feliz neste mundo, mas no outro”; “Penitência, penitência, penitência!”; “Vai dizer aos sacerdotes que venham aqui em procissão e que se edifique aqui uma capela.”

Aparição não é nova revelação. Pode ser, isso sim, atualização da Boa Nova ou grito dos céus para que a humanidade não fique surda às suas mensagens. Como de costume, muita gente duvidou dos relatos da adolescente, que enfrentou interrogatórios de autoridades policiais e da Igreja, até que se convencessem de que ela falava a verdade. Seu confessor chegou a dizer que a melhor prova das aparições é a própria Bernadette, menina analfabeta – só aprendeu a ler e escrever aos dezesseis anos –, pequenina, doente e pobre, que depois entrou na vida religiosa para cuidar dos pequeninos e pequeninas, vivendo na prática a mensagem de Lourdes.

No santuário erguido no local das aparições, como lembra a Encíclica do Papa Pio XII sobre a peregrinação àquele lugar santo, é comovente o cortejo dos humildes, enfermos e aflitos.  Tão importante quanto curas de moléstias físicas, é os doentes se sentirem acolhidos como irmãos e irmãs, numa atmosfera de sofrimento, mas também de  “irradiação de paz, de serenidade e de alegria!” Pois como lembra a Encíclica, aquela gruta suja e desprezada, passou a ser “honrada pela presença da Mãe de Deus! Rocha digna de veneração, da qual brotaram abundantes as águas vivificadoras!” E apesar dos detestáveis casos de exploração da fé alheia – fala-se, por exemplo, da venda da “pedra de Lourdes”, que daria virilidade aos homens –  o certo é que para milhares de peregrinos e peregrinas, Lourdes e a canção de Bernadette aliviam as dores do mundo.

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