Imaculada

Muitas pessoas confundem dogma com tabu. Outras, mesmo frequentadoras assíduas de igreja, não têm certeza de quais são os dogmas da sua fé. E não se pode culpá-las por isso. Como vão saber, se não tem quem explique? Pior ainda é quando pretensos conhecedores do assunto espalham desinformação sobre o tema.

Um dia desses, parei de zapear na internet ao me deparar com essa pérola do absurdo: “Veja 4 momentos em que a Igreja Católica mudou seus dogmas.” Como é que é?! Pensei comigo mesmo. Com base em quê alguém profere um disparate desses? A matéria afirmava que esses quatro momentos eram relacionados ao celibato, religião x ciência, Maria Madalena e o papel de mulher, e respeito a outras religiões. Os temas são importantes, mas nenhum deles é dogma.

Dogma é verdade de fé. E em sentido mais específico, aquela “verdade revelada, vinculante e declarada formalmente pelo Magistério pastoral”, como resume Clodovis Boff. No dogma temos a substância e a formulação que o expressa. O conteúdo não muda nunca. A formulação, como traz a marca do momento histórico, pode progredir como crescimento, mas nunca como mudança. Por isso, como explica aquele teólogo, “os dogmas não são barreiras para o pensamento, mas, ao contrário, são corrimãos que, por um lado, protegem e, por outro, apoiam a ascensão para mais alto.”

Um dos nossos dogmas é o da Imaculada Conceição. Sua formulação, proclamada em 8 de dezembro de 1854, é a seguinte: “Declaramos, pronunciamos e definimos que a doutrina, que acha que a beatíssima virgem Maria no primeiro instante da sua conceição, por singular graça e privilégio de Deus onipotente e em vista dos méritos de Jesus Cristo, salvador do gênero humano, foi preservada imune de toda mancha da culpa original, é revelada por Deus e por isso deve ser crida firme e constantemente por todos os fiéis.”

Essa formulação não foi uma invenção súbita do Papa. Foi longo o processo histórico-teológico que o precedeu. E tudo começou com a fé do povo. Muito antes de pronunciamentos oficiais da Igreja, os pobres celebravam a festa da conceição da mãe de Deus, mesmo contra a vontade de ricos eclesiásticos que queriam proibi-las, porque as consideravam sem fundamento. 

Com o tempo, a teologia foi abrindo a mente e o coração para essa prática de fé do povo. Mas sempre com debates exaltados e até desavenças. A polarização entre “maculistas” e “imaculistas” era tamanha que, em 1484, o Papa Sisto IV editou uma bula proibindo que eles se acusassem uns aos outros de hereges. 

Só depois de documentos de seus antecessores a favor da imaculada conceição, foi que Pio IX criou uma comissão para que fosse decidido o assunto. E por sugestão do teólogo Rosmini, resolveu fazer uma espécie de plebiscito entre os bispos. Toda essa discussão levou cerca de seis anos, até que se chegasse à formulação do dogma, cujo texto passou por oito redações.

O aparente silêncio dos escritos sagrados foi uma das questões básicas dessa discussão. Questionavam-se também as expressões “primeiro instante” e “privilégio”, escolhidas para o texto da formulação. Se Maria foi concebida sem pecado desde o primeiro instante, como Jesus podia ser seu Salvador? Isso não iria de encontro à boa nova da salvação por meio de um único Salvador?

Garimpando o texto sagrado, a bula Ineffabilis Deus, que proclamou o dogma, enumera várias passagens que, ainda que germinalmente, fundamentam a conceição imaculada de Maria. Desde o Gênesis, que fala da mulher que esmagará a cabeça da serpente, até a saudação do anjo, que a proclama cheia de graça, na narrativa de Lucas.

Quanto a expressões da fórmula, sua interpretação pode ser aprimorada, como ocorre na hermenêutica bíblica. Como o texto fala em “primeiro instante” e “privilégio”, mas também “em vista dos méritos de Jesus Cristo, salvador do gênero humano,” podemos entender como Scotus, que “a imaculada conceição não é uma exceção à redenção de Cristo, mas um caso de ação salvífica perfeita e mais eficaz do único mediador.”

No final de contas, qualquer palavra humana, seja da teologia, do Magistério ou da bíblia, é  insuficiente para explicar os mistérios de Deus. No caso da Imaculada, o dogma foi fruto de um dinamismo da fé, começando pela intuição de pessoas simples do povo. Não é demais lembrar que o próprio Jesus louvou o Pai por esconder certas verdades aos sábios e doutores, e as relevar aos pequeninos. Mas é claro que isso não significa a generalização indevida do chavão de que a voz do povo é a voz de Deus. A piedade popular passou pelo discernimento teológico, pela cuidadosa ponderação do Magistério, até chegar à formulação do dogma.

Também não se pode esquecer que o dogma não é da autossalvação de Maria. Cristo é a essência das verdades reveladas. Todos os dogmas têm de ser cristocêntricos. E a razão última da Imaculada Conceição é o amor gratuito de Deus pela humanidade. Mas me responda uma coisa: de todas as pessoas do gênero humano, quem haveria de ser mais agraciada por Deus do que Maria?

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