Histórias e polêmicas das aparições em Cimbres

Em 1936 corria a notícia de que Lampião ia invadir Pesqueira, no agreste de Pernambuco. Dona Auta Teixeira e o marido Artur resolveram se refugiar com a família, na área indígena Xukuru, em Cimbres. Lá eles tinham terras, no Sítio Guarda, onde montaram um altar para Nossa Senhora das Montanhas, santa cultuada há muito tempo por aquelas bandas e que, para os indígenas, é a Mãe Tamain.

Certo dia, Maria da Luz, filha do casal, e Maria da Conceição, agregada da família, saíram para pegar sementes de mamona. No caminho, conversavam sobre o que fariam se Lampião aparecesse ali, quando Conceição disse que Nossa Senhora daria um jeito para o cangaceiro não lhes fazer mal. Foi quando Maria da Conceição viu a imagem de uma mulher – em alguns relatos, a imagem aparece com um menino; noutros, o menino joga uma pedra e a mão da senhora sangra –, visão compartilhada por Maria da Luz. Assustadas, elas voltaram para casa, contaram o que tinham visto, mas a família não acreditou nelas. 

Depois o pai de Maria da Luz foi com elas e um grupo de homens ao local das aparições, pensando que poderia ter cangaceiros por lá. Como ninguém via a imagem, a não ser as mocinhas, o pai pediu à filha que perguntasse à mulher quem era ela, e esta respondeu: “Eu sou a Graça”. E disse para fazerem orações e penitências, pois a humanidade estava em sofrimento. A história daquele acontecimento se espalhou. Porém as autoridades religiosas e a polícia fizeram de tudo para conter a divulgação. A ordem era para não deixarem ninguém circular pelo local. Pois no entender deles, o povo ignorante poderia transformar o sítio em lugar de fanatismo, o que era proibido pela Igreja, que deveria ser a única mediadora das manifestações divinas.

Apesar disso, um padre alemão, José Kehrle, foi designado para investigar o caso. Na investigação, ele se valia de um questionário, repassado para as mocinhas, para que fizessem perguntas à Nossa Senhora. Ao fim da investigação, o padre se convenceu da autenticidade dos relatos das videntes. Mas por obediência, fez um voto de silêncio sobre o assunto.

Com a ajuda do padre, Maria da Luz foi parar num convento. Depois de freira, adotou o nome Irmã Adélia. Já Maria da Conceição foi mandada de volta para a casa dos pais. Numa carta enviada ao padre Kehrle, em 1936, Maria da Luz já informava que Conceição estava separada dela, e achava-se de pouca fé, sem ter mais visões de Nossa Senhora. Pelo que se sabe, Maria da Conceição se casou e separou-se, passando a ter uma vida comum na cidade de Arcoverde, até sua morte em 1999.

Em 1985, Irmã Adélia foi curada de um câncer. Para isso, dizem que ela também se valeu de uma erva que os indígenas chamavam zabumbinha, detalhe omitido em alguns relatos. Depois disso voltou a frequentar Cimbres, teve novas experiências espirituais com Nossa Senhora, e passou a fazer trabalho assistencial no Sítio Guarda. Faleceu em 2013, aos 90 anos.

Somente no ano passado, o bispo de Pesqueira publicou uma Carta Pastoral, admitindo que o local das visões da Irmã Adélia tem sinais de sobrenaturalidade, e que o povo de Deus pode ali acorrer para celebrar e viver sua fé. Não se trata, ainda, de reconhecimento oficial pela Santa Sé, mas é um passo importante para a canonização de Irmã Adélia, que pode vir a ser a primeira santa católica pernambucana, numa mudança de postura que traz muitas questões à reflexão.

Por que o padre confessor de Maria da Luz – como ela informa numa carta ao Padre Kehrle em 1937 –, teria exigido que ela negasse a aparição de Nossa Senhora? Por que ela se curvou ao silêncio que lhe foi imposto, mesmo estando a Mãe de Deus acima da hierarquia? A pergunta do questionário do Padre Kehrle, se o sofrimento anunciado por Nossa Senhora viria do comunismo, era parte da ideologia de um governo de viés anticomunista, que flertava com o catolicismo? A omissão a elementos da cultura indígena na história das aparições é atitude discriminatória? Por que os dirigentes da Igreja tentavam proibir a dança do toré nas festividades de Nossa Senhora das Montanhas? O reconhecimento de Outra Senhora, em outro ponto do país, poucos anos depois que  Nossa Senhora Aparecida tinha sido reconhecida como Padroeira do Brasil, poderia prejudicar os objetivos dos dirigentes da Igreja? A mudança de postura, mais de cinquenta anos depois, é um reconhecimento da persistente fé do povo ou estratégia para não perder fiéis? Se não existe alguém que tenha visto Nossa Senhora que não seja santo ou santa, por que não canonizar também Maria da Conceição?

Não tenho a presunção de achar que sei das respostas. Mas penso que perguntar não é pecado. Também concordo com Bordieu, quando observa que o arranjo das forças políticas envolve a disputa pela apropriação de diversos capitais, incluindo o capital religioso. Política está em todo canto. Não é restrita a candidato em tempo de eleição, nem a autoridade querendo mostrar que manda mais que a outra. E como se vê, polêmicas político-religiosas existem muito antes das bolhas ideológicas dos grupos de whatsapp.

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