Guadalupe: leito do rio de amor e de paz.

A saudade dos meus oito anos não é tão lírica quanto a de Casimiro de Abreu. Não me faz recordar um céu bordado de estrelas, adormecer sorrindo ou despertar cantando. Mas me lembra tomar banho de chuva no meio da rua, o “bola ou bura” no quintal de terra batida, os rabiscos de giz no chão do mercado velho, em frente à barraca do meu pai. Minh’alma, respirando inocência, não era afetada pela atmosfera pesada que o Brasil vivia.

Somente depois meu coração ficou inquieto ao aprender que salvação também é libertação. E mais ainda, ao ler As veias abertas da América Latina, retratando a miséria de milhões de inocentes, no coração da tormenta do capitalismo periférico. Como foi duro saber que Josué de Castro tinha dito: “Eu, que recebi um prêmio internacional da paz, penso que, infelizmente, não há solução além da violência para a América Latina”. 

De tanta indignação, achei bonita a nostalgia belicosa do cacique Tupác Amaru, apresentada no livro. E admirei o heroísmo do padre Miguel Hidalgo, ao pegar em armas na luta pela libertação dos povos indígenas, empunhando o estandarte da Virgem Índia de Guadalupe. Mas hoje eu penso que isso não combina com a mensagem do códice da padroeira da América Latina.

Conta o Nican Mapohua (“Aqui se narra”), texto atribuído a Antônio Valeriano, que em 1531, Nossa Senhora apareceu ao índio Juan Diego. A dominação do México pelos espanhóis, com o massacre dos aztecas, tinha completado dez anos. No final daquele ano, a Virgem, falando na língua indígena, disse a Juan para comunicar ao bispo da cidade do México o desejo dela, de que fosse construído um templo na esplanada, onde ela pudesse oferecer a todos e todas, todo o seu amor, compaixão, auxílio e proteção.

O bispo, porém, não acreditou na história do índio, e pediu-lhe um sinal. Nossa Senhora, então, mandou Juan colher rosas de Castela, que brotaram fora da estação e numa árida colina. Ele as envolveu em seu manto rústico (tilma) e dirigiu-se ao palácio do bispo. Chegando lá, repetiu a mensagem recebida e desenrolou o manto. Assim que as flores caíram no chão, surgiu na tilma a imagem da Virgem Maria, até hoje venerada no santuário de Guadalupe, também considerada um códice, gravura para ser lida e interpretada.

Os traços mestiços do rosto – nem cem por cento de uma índia, nem de uma europeia –,  fazem com que ela seja carinhosamente chamada La Morenita. Na tradição dos nativos, o penteado é de uma virgem, mas a fita na barriga é de uma índia grávida. As estrelas nas vestes correspondem às do firmamento do local na época das aparições. A imagem dos olhos, ampliada por computador, permitiu identificar treze figuras humanas dentro deles, incluindo a de um indígena e a de um bispo.

Sei que há controvérsias quanto aos mistérios que envolvem o manto. E que não se pode retirar de ninguém o sagrado direito de duvidar, principalmente no campo da investigação científica. Há quem diga que a imagem se assemelha à arte pré-colonial espanhola. Também não descartam a possibilidade de sua adulteração, pois houve acréscimos à gravura original. Chegam a duvidar da própria existência de Juan Diego, mesmo ele tendo sido canonizado pela Igreja.

Nada disso, porém, retira a força do códice de Guadalupe. Ele fala indistintamente aos olhos, ouvidos, mentes e corações de indígenas e não-indígenas, crentes e não-crentes, cientistas e não-cientistas. E sua mensagem não é de exploração e guerra entre os povos, seja entre russos e ucranianos, árabes e judeus, imperialistas e colonizados, que continuam vitimando inocentes, como os esmagados no centro da tormenta da América de veias abertas.

Não desconheço que nosso catecismo admite a guerra em legítima defesa, desde que sob rígido controle de legitimidade moral. Mas Nossa Senhora não é mãe de um catecismo. Como na mensagem a Juan Diego, ela se revela como mãe misericordiosa de todos os habitantes da terra. E como sugere a palavra Guadalupe, que também pode significar leito do rio, mesmo não sendo a Água Viva,  ela oferece essa água a quem tem sede de justiça, amor e paz, sem exigir passaporte para comprovar de onde se vem ou para onde se vai.

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