A mulher do padre




Reza a lenda que na noite de quinta para sexta, uma mulher se transforma na mula sem cabeça. Amaldiçoada por ter relação com um padre, ela galopa madrugada adentro, soltando fogo pelas ventas e espalhando terror. Pela manhã, é possível alguém deparar-se com ela em forma humana, arrependida e chorando, sem lembrar do que aconteceu na noite anterior. Dizem que a maldição pode ser quebrada se o padre que foi seu amante renegá-la sete vezes antes da missa.
Essa lenda chegou à nossa terra junto com a cultura trazida pelos colonizadores europeus e se espalhou no imaginário popular. Dessa cultura já fazia parte a norma de nossa Igreja, de que padre não pode se casar, tema que volta e meia provoca discussões, tendo sido objeto de especulação na imprensa nestes últimos dias.

Bastou o Vaticano divulgar o documento de trabalho do Sínodo Amazônico, para que algumas revistas publicassem manchetes sobre a proposta de ordenação de padres casados na Amazônia, como sinal de modernização da Igreja. Mas o texto, depois de afirmar que o celibato é uma dádiva para a Igreja, pede apenas que, para as áreas mais remotas da região, seja estudada a possibilidade de ordenação sacerdotal de pessoas idosas, de preferência indígenas, respeitadas e reconhecidas por sua comunidade, mesmo que já tenham uma família constituída e estável, com a finalidade de assegurar os Sacramentos que acompanhem e sustentem a vida cristã.

Um pedido para se estudar uma possibilidade dessas não é uma proposta concreta e ampla de ordenação sacerdotal de homens casados. O propósito também não é de acompanhar tendências modernas. Diferente disso, o documento fala em recuperar aspectos da Igreja primitiva, quando ela respondia a necessidades da comunidade, criando ministérios oportunos.

Como exemplo, o texto se refere à escolha dos sete diáconos, narrada nos Atos dos Apóstolos, para atender à necessidade do serviço de distribuição diária, deixando os discípulos mais livres para a pregação da palavra. Também faz alusão à Primeira Carta de Paulo a Timóteo, que fala de normas para o candidato ao episcopado. Era preciso que o bispo fosse irrepreensível, esposo de uma única mulher, sóbrio, ponderado, educado, hospitaleiro, apto para o ensino, não beberrão nem briguento, mas amável, pacífico e que não pensasse só em dinheiro.

Afirmar o celibato como dádiva e, ao mesmo tempo, referir-se a uma norma da Igreja primitiva sobre a necessidade do bispo ser casado pode parecer um paradoxo, como é a ideia de uma mula que bota fogo pelas ventas, mesmo sem ter cabeça. No entanto, como lembra Enzo Bianchi, celibato e matrimônio são duas possibilidades de vida igualmente positivas. Em ambas, quem decide seguir a Deus é chamado a amar, esperar o Reino e anunciá-lo.

Celibato não se confunde com castidade. Castidade é integração correta da sexualidade e esta é energia que nos motiva a procurar amor e se integra no modo como nos sentimos, movemos, tocamos e somos tocados, como define a Organização Mundial de Saúde. O padre seduzido pela mulher que virou mula era celibatário mas não casto, assim como é possível viver a castidade no matrimônio.

Mesmo que o Sínodo venha a sinalizar para a proposta de ordenação de padres casados, em situações excepcionais, o celibato continuará sendo brilhante pedra preciosa, como afirma a Encíclica Sacerdotalis Caelibatus, do Papa Paulo VI. Publicada na festa de São João de 1967, a Encíclica mostra que celibato é muito mais que proibição do casamento aos padres, pois envolve as dimensões cristológica, eclesiológica e escatológica. Acima de tudo, ele deve ser vivido por amor a Cristo. Nesse amor, deixa de ser apenas um dom pessoal, para ser um serviço de doação à Igreja. Além disso, prenuncia a vida na eternidade.

Sobre a vida eterna, costumo dizer à minha mulher, em tom de brincadeira, que se eu chegar primeiro ao Paraíso e ela vier depois se dizendo minha esposa, eu direi: “Peraí”! Aqui não! Pela nossa fé, o matrimônio é até que a morte nos separe. Na vida eterna haverá continuidade. Não fosse assim, não faria sentido falar em ressurreição. Mas a continuidade não valerá para algumas coisas da ordem terrena, como sexo e matrimônio. No plano do amor eterno, sexualidade, matrimônio e celibato não terão mais razão de ser.

Eu, comigo mesmo, imagino que daqui a uns dois mil anos, é possível à Igreja ampliar a possibilidade de ordenação de padres casados, deixando o celibato como opção pessoal de cada sacerdote. Ainda assim, o celibato assumido como dom e doação jamais perderá seu valor. E a mulher do padre poderá ser tão comum como era a do bispo na Igreja primitiva, e não uma condenada à vagante e medonha mula sem cabeça.

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