Benditas fotos



Redes sociais têm suas modas. O desafio dos dez anos, além de divertir muita gente, tem dado o que falar. Será que colocar, lado a lado, a própria foto do antes e do depois, mais do que constatar nossa evolução ou decadência, facilita o aprendizado das máquinas para o reconhecimento facial? Mais do que uma brincadeira inocente, essa campanha viral pode esconder esquemas de coleta de dados por inteligência artificial? Padrões de envelhecimento podem ser utilizados para avaliação de seguros ou planos de saúde? Pior ainda, reconhecimento facial biométrico pode ser burlado com a confecção de máscaras a partir dessas imagens?
Não sou de perder o sono com teorias da conspiração, embora goste de especular sobre elas. Na minha santa ignorância sobre os mecanismos desse mundo virtual, penso que se nós exibimos nas redes não só nossas próprias caras e bocas, mas até as de nossos recém-nascidos, já entregamos de bandeja, todo santo dia, dados que possibilitam invasão de privacidade e põem em risco nossa segurança. Um desafio a mais, um a menos, não há de fazer tanta diferença. 
De todo modo, como posto mais imagens de momentos do que selfies, o desafio me relembrou os dez anos do último janeiro de minha mãe, pois na eternidade janeiros já não há. Tão bom a comemoração ter sido em nossa casa, do jeito que ela mais gostava, na alegria e simplicidade de reunir a família. As fotos daquele dia, mesmo não sendo feitas com esse intuito, anos depois foram postadas em rede social, uma delas emoldurada com os versos de Drummond:

“Fosse eu Rei do Mundo,
baixava uma lei:
Mãe não morre nunca,
mãe ficará sempre
        junto de seu filho
e ele, velho embora,
será pequenino
feito grão de milho.”


Dez anos mais velho, olho para aquelas fotos não para confrontar o antes e o depois de todos os que ali estamos. Não nego sentir certa nostalgia ao rever os traços da infância e adolescência dos filhos, agora adultos, que nos deixam com o coração apertado pela síndrome do ninho vazio. O que mais me comove é pensar que, naquele momento, não passava na cabeça de nenhum dos presentes, muito menos da minha mãe, que ela estivesse vivendo seu último aniversário. 
Saber que a morte é certa ajuda a compor o roteiro da vida. Nas Intermitências da morte, Saramago nos faz refletir sobre como seria o mundo se ninguém morresse. Magoada por ser tão detestada, a morte resolve mostrar como as pessoas são ingratas com ela, e suspende suas atividades no país. Começam, então, os inúmeros problemas, não apenas para empresários do setor funerário. Hospitais ficam lotados com moribundos que não podem passar desta para melhor. O primeiro-ministro se vê às voltas com a crise, e o cardeal, em tom apocalíptico, sentencia que “sem morte não há ressurreição, e sem ressurreição não há igreja”.
Mesmo na certeza que a morte vem, não deixa de ser uma bênção não sabermos o dia nem a hora. A ignorância de sua chegada, como na letra da canção de Zélia Duncan, está entre as benditas coisas que não sabemos, os lugares que ainda não conhecemos, gostos que ainda não provamos, amores que haveremos ou não de encontrar,  afinal de contas, “bom é não saber o quanto a vida dura ou se estarei aqui na primavera futura”, pois somente assim “posso brincar de eternidade agora sem culpa nenhuma.”
Benditas as fotos de dez anos atrás. Elas não me trazem sofrimento por comparar o antes e o  depois, os cabelos que perdi e as rugas que ganhei. Em vez disso, me fazem reviver instantes em que brincamos de eternidade, e me abrem as portas para outros em que haveremos de brincar. Nesses momentos suspende-se a morte, e todos, diante da grandiosidade da vida, são sempre pequeninos feito grãos de milho.

Comentários

  1. Lindas palavras professor Antônio! Que fizeram de meus aljofrarem lágrimas diante da sensibilidade de quem sente, age e escreve com o coração.

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