Além de tudo o que se possa imaginar


Nem sempre é fácil responder a perguntas de crianças. Minha sobrinha, outro dia, queria saber como era possível terem surgido tantas famílias diferentes, se no início só foi criada uma mulher. Tentei explicar a ela que Eva, mais do que o nome de uma pessoa, simbolizava a primeira mãe dos viventes. Isso não significava que não pudesse haver outras mulheres na narrativa da criação. No caso da família de Adão e Eva, se a Bíblia diz que Caim, primeiro filho do casal, conheceu sua mulher e esta deu à luz Henoc, não faz sentido imaginar que todas as pessoas daquela família nasceram da barriga de Eva.

Francamente, não sei se a convenci, nem se aquela foi a melhor resposta, mas foi a que consegui apresentar na hora. Tive o cuidado, também, de dizer que muitas palavras da Bíblia não devem ser entendidas no sentido denotativo, pois a verdade revelada vai muito além do pé da letra. Cortar o pecado pela raiz, por exemplo, não é recomendação literal de arrancar o olho que olha cobiçando, nem amputar a mão que pega o alheio ou o pé que trilha o mau caminho. Lembrei que havia quem pensasse que os homens tinham uma costela a menos, porque a Bíblia diz que Eva foi tirada de uma costela de Adão. 
A Bíblia, nesse contexto, pode ser vista como uma grande parábola. Não é que todos os seus textos sejam ilustrações. Como forma literária, parábola é narração alegórica para ensinamento, com traços distintivos da fábula da literatura infantil, normalmente com a personificação de animais, e do apólogo, que também se vale da humanização de objetos, como no famoso conto da agulha e do novelo de linha, de Machado de Assis. Mas é que a Bíblia, como uma linha parabólica que aponta para o infinito, não pode ser medida pela régua reta da ciência.


As parábolas de Jesus são exemplos da palavra utilizada para comunicar verdades eternas. Por que Jesus, para ensinar a seus seguidores, não vai direto ao ponto? Assim questiona Edson Fernando, no livro Para quem tem fome de beleza. Para aquele Pastor, Jesus evitava o ensino retilíneo, de verdades prontas e acabadas, que precisassem apenas ser engolidas pelos seus interlocutores. Em vez disso, com a parábola, que à imagem e semelhança de Cristo, é criação e palavra criadora que toca e remexe as profundezas humanas, é como se Jesus comunicasse a nós o próprio ato criador.


O Padre Rômulo Cândido de Souza, no livro Palavra, parábola, observa que é uma insensatez querer que uma parábola seja comparada a uma crônica histórica. Parábola é sempre mais revolucionária e desafiadora que qualquer lógica humana. Na parábola do rico e Lázaro, até o inferno parece inusitado. Nele, o rico, mesmo condenado ao castigo eterno, reza e faz um pedido ao céu, sente compaixão por seus irmãos que ainda poderiam ser salvos, e mesmo não sendo atendido, chama Abraão de Pai, que o trata pelo nome de filho.
Como instigante aventura no mundo da linguagem, Palavra, parábola também remexe no sentido de alguns termos bíblicos. Kefa, por exemplo, não é apenas a pedra sobre a qual seria edificada a Igreja, mas também a cavidade na rocha. E como ekklesia é mais a reunião de pessoas do que um edifício, a etimologia e a simbologia autorizariam várias significações sobre a metáfora atribuída a Pedro, não apenas como pedra, mas a caverna escavada na montanha, onde seria gerado o povo de Deus, uma gruta para servir de abrigo aos mais necessitados.


A abertura à multiplicação de significações é característica do símbolo, expressão poética dinâmica e inesgotável. Daí que a parábola, como palavra que aponta para o infinito, é a mais apropriada para tangenciar a grandiosidade de Deus, que não pode ser medida pela régua reta da ciência, ainda que seja da Teologia, a ciência da fé. Como lembra o padre Rômulo, até a fé mais profunda tem seus limites, mas a ação de Deus rompe todas as fronteiras, seja da morte, do inferno ou da fé, e vai muito além de tudo o que se possa imaginar.                                          

Comentários

  1. Gostei da explicação. Na verdade sempre gosto quando escritores se esforçam para tornar "um conteúdo dificil" em Algo fácil e intuitivo!

    ResponderExcluir

Postar um comentário