Para quem crê e quem não crê



Como de costume, comecei aquela aula lembrando a etimologia de ética e moral. Tanto a origem de uma, que vem do Grego, quanto da outra, do Latim, têm a ver com o significado de costume, o que me trouxe à mente a letra de uma canção que gosto muito de ouvir, e me aventuro a tocar, nas minhas lições como aprendiz de saxofonista.

My way é o título em inglês da música francesa Comme d’habitude, que quer dizer, justamente, como de costume. Na letra original, o eu lírico é um homem que fala do dia a dia de um romance que virou rotina. Na versão eternizada por Frank Sinatra, é alguém que, imaginando que o fim está próximo, faz um balanço da vida, dos amores e arrependimentos, dos sorrisos e lágrimas, e apesar das falhas e derrotas, conclui que fez tudo do seu jeito.

O que cada um faz na vida e da vida, como ato consciente e voluntário que afeta os outros, é objeto da ética, reflexão sobre o comportamento moral das pessoas em sociedade. Ética, como uma vez disse Cortella, trata dos princípios para decidir sobre três grandes questões humanas, que são quero, devo e posso: “tem coisas que eu quero mas não devo, tem coisas que eu devo mas não posso, tem coisas que eu posso mas não quero.”

Como o quero, o devo e o posso não estão necessariamente alinhados nas esferas da vida, nem sempre é fácil fazer a coisa certa, por mais conhecimento e boa vontade que se tenha. Tem hora que é difícil até saber de onde vem a voz que nos diz o que é certo. Até a bússola ética da fé pode sofrer tentações das misérias humanas, a retinirem o martelo filosófico de Nietzsche, na suspeita de que certos ideais da moral, de tão altos que são, acabam como inchaços metafísicos que fazem a pessoa fugir da vida, antes de se voltar contra ela.

Fugir da vida ou se voltar contra ela, diz Luc Ferry no livro Aprender a viver, é o que alguém faz quando julga a realidade à luz do ideal, como se este fosse exterior à vida, enquanto nada pode existir fora da realidade. Contudo, ele exalta o pensamento cristão, no qual o transcendente se faz imanente, numa doutrina da salvação baseada no amor, que conquistou o coração de tantas pessoas e fez da filosofia, por muito tempo, humilde serva da religião.

Ao falar sobre a vitória do cristianismo sobre a filosofia grega, Ferry explica que, na visão cristã, o logos deixa de ser a ordem impessoal e divina do cosmos, e passa a ser o Verbo encarnado. Para os gregos, a concepção de que o logos fosse uma pessoa, e não a organização racional, bela e boa do universo, era puro delírio. Mas foi isso que permitiu a passagem de uma doutrina da salvação anônima e cega, na qual a morte é a transformação do indivíduo consciente em fragmento cósmico inconsciente, para a promessa de uma imortalidade pessoal.

O cristianismo também promoveu uma revolução ética. Muito antes que liberdade, igualdade e fraternidade virassem lema da Revolução Francesa, Jesus as colocava em pauta e em prática em pleno mundo antigo, lançando as sementes da moderna ideia de humanidade. Diferente do pensamento aristocrático grego, de supremacia dos melhores por natureza, o cristianismo proclama que não há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há homem nem mulher, pois todos são um só em Cristo Jesus.

Para o vocabulário moral dos gregos, a noção de virtude é, antes de tudo, a excelência de uma capacidade natural. Enquanto isso, na parábola dos talentos, o que importa não é a desigualdade dos dons de cada pessoa, mas o uso livre e consciente que ela faz dos talentos que lhes são dados. Assim, dons naturais como força, beleza ou inteligência continuam a ser qualidades, mas não no plano moral, pois podem servir ao melhor ou ao pior do que há no mundo.

Mesmo exaltando o cristianismo, Luc Ferry deixa claro que não crê na transcendência religiosa, e nem por isso abre mão da ética. Para ele, não existe o céu das ideias metafísicas, nem a pessoa é obrigada a crer em Deus para aceitar que o ser humano tem valores que vão além de si mesmo, embora não estejam em outro lugar a não ser a própria consciência. Afinal, a ética habita o mundo de quem crê e quem não crê, e cabe até na letra de uma canção sobre a contabilidade moral de alguém no fim da vida.

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