Mais do que som e fúria

“Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la. Em cofre não se guarda coisa alguma.” Gosto tanto destes versos que, sempre que posso, procuro repeti-los para guardá-los no coração. De que vale a poesia trancada nas páginas de um livro que ninguém lê? Por isso, pedi aos jovens naquela sala – colegas de minha filha, em plena síndrome do pré-ENEM –, para recitarmos juntos o poema de Antônio Cícero.

A sugestão era falarmos sobre direitos humanos, sua importância e propostas de intervenção na redação exigida no Exame Nacional do Ensino Médio. O poema era para fazer pensar sobre o que ficará guardado na mente daqueles jovens, depois que os ventos da aprovação no exame levarem embora o que for decorado apenas como fórmulas necessárias para resolverem questões.

Depois do poema, apresentei-lhes um pensamento do jurista Fábio Comparato sobre o assunto. Para ele, a afirmação dos direitos humanos é a página mais bela de nossa história: “a revelação de que todos os seres humanos, apesar das inúmeras diferenças biológicas e culturais que os distinguem entre si, merecem igual respeito, como únicos entes no mundo capazes de amar, descobrir a verdade e criar a beleza. E o reconhecimento universal de que, em razão dessa radical igualdade, ninguém – nenhum indivíduo, gênero, etnia, classe social, grupo religioso ou nação – pode afirmar-se superior aos demais.”

Nem sempre, porém, a história dos direitos humanos é tão bela quanto a afirmação que dela se faz. Corações capazes de amar também estão aptos a odiar, mentes engenhosas para descobrir a verdade podem servir à mentira, mãos talentosas para criar beleza podem fabricar feiura. Quanto a relatividade desta, não ponho em dúvida a máxima de que quem ama o feito, bonito lhe parece, nem que a beleza esteja nos olhos de quem vê. Mas nos tempos em que vivemos, não vejo como se achar bonito a tortura ou o paredão, o terrorismo ou o genocídio, o campo de concentração ou o gulag.

No meu coração devoto, não quero crer que a vida humana, como exclama desesperadamente Macbeth, não passe de uma história contada por um idiota, cheia de som e de fúria, sem nenhum significado. Nesse ponto, concordo com Comparato, quando ele diz que a evolução humana não pode vagar sem rumo, como nave desbussolada através da história. Muitas vezes, porém, a realidade contraria a concepção de progresso moral da humanidade.

Seja como for, não tenho dúvida de que é preciso espalhar a boa nova dos direitos humanos. E neste mundo tão complexo, de whatsapp, fake news, indústria 4.0 e tantas outras novidades, mais do nunca é preciso reinventá-los, como dizia Herrera Flores. A começar pela redefinição de dignidade humana, que deve ser vista não como algo abstrato, mas como um fim material, “um objetivo que se concretiza no acesso igualitário e generalizado aos bens que fazem com que a vida seja digna de ser vivida.”

Todo ser humano tem necessidade de bens materiais e imateriais para ser gerado como gente, nascer como gente, viver e morrer como gente. Esses bens variam de acordo com cada época e cultura. Wifi, por exemplo, era algo que ninguém imaginaria existir nos meus tempos de criança. Hoje é quase necessidade básica. O acesso igualitário aos bens necessários à vida digna leva à concretização dos direitos humanos, tornando-os muito mais que bonitos textos normativos produzidos pela cultura ocidental.

Terminada a palestra, uma colega de minha filha veio a mim, e perguntou o que poderia ser feito, na prática, para resolver problemas difíceis, como a política dos resíduos sólidos, que determinou o fim dos lixões e até hoje não saiu do papel. Achei tão bonita aquela expressão sincera da ética da responsabilidade. Disse-lhe algumas coisas, mas confesso que não tinha como lhe dar orientação mais segura, pois às vezes nem eu mesmo me sinto tão confiante quanto ao que nos espera, quando vejo o que hoje fazemos do mundo que nos é dado a cuidar. Porém, no fundo do meu coração, onde faço de tudo para guardar o que merece ser guardado, guardo a fé nesses jovens preocupados com o bem comum. Para eles, assim como para meus filhos, desejo um futuro não de som e de fúria, mas uma história cheia de significado.


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