O hino com que poderemos sonhar



Vez por outra sonho com alguma música. Pode ser só uma repetição, feito o  “taratá” da Medicina de Anitta, ou então uma canção completa, melodia e letra, que invade, de repente, meu episódio onírico. Numa dessas madrugadas, em meu sonho eu cantava o “marco extraordinário, sesquicentenário da independência.” Acordei pensativo, tentando saber o que teria desatado o nó daquela memória musical há tempos adormecida em meu baú psíquico.
Quando me ensinaram aquele hino, eu era um menino tímido de nove anos. Sabia que éramos governados pelo presidente Médici, mas não tinha a exata noção de que vivíamos anos de chumbo. Na escola, aprendíamos a história de um Brasil em desenvolvimento, orgulhoso de obras grandiosas como a Transamazônica. Daí não ser estranho ufanar-se do país entoando canções.
 
Os Incríveis tinham estourado com “Eu te amo, meu Brasil”, composição de Dom, parceiro de Ravel, e essa dupla já havia emplacado o hit “Você também é responsável”, que Jarbas Passarinho, então Ministro da Educação, transformou no hino do Mobral, que fazia analfabeto desenhar o nome para poder votar, e que virou gíria para chamar alguém de burro ou ignorante. 
Naquele contexto, a canção do sesquicentenário da independência era mais uma a entrar para o hinário de louvação à pátria. Seu compositor, Miguel Gustavo, já tinha feito jingle até para João Goulart. A canção foi gravada por Miltinho, como marcha de carnaval. Depois, transformada em hino, foi interpretada por Ângela Maria. O Brasil, cantado na música, é a potência de amor e paz, nascida do grito de glória de Dom Pedro e capaz de fazer coisas que ninguém imagina que faz. 
Para exaltar essa potência, quando se aproximavam os cento e cinquenta anos da sua independência, o governo brasileiro organizou uma série de eventos, a fim de tornar o  sesquicentenário um verdadeiro marco extraordinário. Pediu às autoridades portuguesas o traslado dos restos mortais de D. Pedro I, dando início às comemorações nas primeiras semanas de abril, ainda em Portugal. Lá foi embarcado o esquife com os despojos do imperador, com destino ao Rio de Janeiro, onde foi recebido solenemente no dia do nosso “descobrimento”, para depois peregrinar pelas capitais brasileiras, como se fosse uma relíquia, até chegar a São Paulo.
No Brasil, a população foi mobilizada para participar dos encontros cívicos nacionais, realizados entre o dia de Tiradentes e o sete de setembro. Em maio, o fogo simbólico saiu de vários recantos do nosso território em direção à capital paulista, para abrir a semana da pátria no início de setembro. Em junho, foi a vez da Taça Independência, “minicopa” disputada entre seleções de futebol de vários países, com destaque para o “escrete canarinho”, na época tricampeão mundial. 
Naquele ano, milhões de pessoas lotaram os cinemas para ver Independência ou Morte, filme estrelado por Tarcísio Meira e Glória Menezes. Até Elis Regina abrilhantou as comemorações do sesquicentenário, por isso sendo atingida por faíscas do patrulhamento ideológico, embora tenha se explicado que se sentiu forçada a participar: “Eu não fui, me foram”,  teria dito ela.
Do menino que eu fui, que aprendeu e cantou aquele hino, bem que eu poderia dizer “que eu não fui, mas que me foram.” Não pelas razões de Elis, que sentiu na pele a violência da intimidação, mas porque eu era, naquele tempo, um garoto conduzido ao altar do ufanismo pelas mãos da pedagogia oficial. Por outro lado, como adepto da doutrina do pecado original, creio que ninguém é cem por cento inocente. 
Por isso, neste tempo de embate eleitoral, é triste ver amnésia e miopia seletivas, de quem só lembra ou enxerga o que lhe interessa. Quase ninguém assume o mal que um dia fez, para dar credibilidade ao bem que promete fazer. E mesmo sem a intimidação de um regime de força, muitos se tornam reféns de sectarismos, de quem só tem projeto de poder e não de nação. 
Daqui a quatro anos será o bicentenário da independência. Não faço ideia da canção que poderemos compor para comemorá-lo. Mas sei que das escolhas que faremos nascerá o hino da vida com que poderemos sonhar.

Comentários