Moídos e moendas



Tempo de eleição, o assunto é eleição. Nas redes sociais, postagens sobre candidatos e seus devotos se propagam aos montes, muitas delas bem insólitas. É estranho, pela conveniência do aliado da hora, ex-golpista virar reposicionado, e conservador se assumir, como se fosse rebelde recém-saído do armário. Tem hora que o rame-rame é tão grande, que não tem cristão que aguente. Nesse moído eleitoral, de paixões à flor da pele, o exame de consciência que alguns aceitam é só da autocrítica alheia. Se bem que não se possa exigir de ninguém, neste tempo de campanha, coerência tão superlativa quanto a de João Teodoro.

Personagem de Monteiro Lobato, o único defeito de  João Teodoro, honestíssimo cidadão de Itaoca, era não valorizar a si mesmo. Embora o deperecimento de sua terra lhe apertasse o coração, ele não cogitava abandoná-la, a não ser que acontecesse algo que lhe desse a certeza de que Itaoca não tinha mais jeito. Foi quando saiu sua nomeação para delegado, a maior autoridade do lugar, sujeito que prendia e soltava os outros, mandava dar surra, ia à capital tratar com o governo. Então João Teodoro não teve dúvida. Arrumou as malas no lombo do burrico e partiu bem cedinho. E quando um amigo madrugador quis saber o que se passava, ele disse que ia embora porque Itaoca chegara ao fim: 

“– Mas como? Agora que você está delegado?”, perguntou o amigo. 
“– Justamente por isso. Terra em que João Teodoro chega a delegado, eu não moro. Adeus. E sumiu.”

Como não pretendo sumir de minha terra, é melhor não me aperrear com o moído eleitoral. Se por um lado a polarização descamba para o bate-boca infecundo, o debate acalorado não deixa de expressar o desejo de protagonismo político de parte do eleitorado, sem o qual nossa imperfeitíssima democracia não se sustenta nem avança. Para contribuir com esse avanço, a CNBB editou uma cartilha de orientação política, sobre os cristãos e as eleições de 2018.
Corrupção, desalento do eleitorado e acirramento da polarização, diz a cartilha, são ameaças à democracia. Muita gente demoniza a política ou embarca no discurso da intolerância. O diálogo com quem pensa diferente fica cada vez mais difícil. Apesar disso, há sinais de esperança. A lei da Ficha Limpa barra as candidaturas de políticos corruptos, e a sociedade civil se organiza para fiscalizar a atuação das autoridades ungidas pelo poder que vem do povo.
Após lembrar que a política tem a ver com problemas que afetam a vida de todos, a cartilha convida a escolher candidatos de boa índole, conhecer sua história, projetos e testemunho de vida. Pede ao eleitor que fique atento à enganação das fake news. Na hora do voto, que escolha quem apresente sincera adesão a valores cristãos, de defesa da vida, da família e da causa dos pobres. Que não se vote, porém, em quem promete fazer o que não é de sua competência, quem tenta comprar  voto, é agressivo ou demagogo. Diz o texto que a lista desses defeitos – penso que também das qualidades – pode ser completada nas comunidades, a partir da realidade local. Mas para atender a tantos requisitos, acho que talvez não sobrem muitos candidatos, no sentido original da palavra.
Candidato vem de cândido, que quer dizer branco ou puro. Em Latim, candidatus significa vestido de branco. Antigamente, em Roma, para disputar um cargo eletivo, o cidadão tinha de ser candidatus. Vestia um traje branco, símbolo da pureza de suas intenções, e saía pela rua em busca de apoio dos moradores. A estes cabia aceitar a apresentação ou jogar lama nas vestes cândidas de quem tentasse enganar o povo.
Não havemos, porém, de gastar nossa lama em vão, nem exigir tanta pureza de quem pede  voto, afinal, a política não é coisa somente de cândidos. Também não duvido que a mesma cartilha de orientação possa ser lida e entendida de modo diferente, dependendo da visão particular do cristão, do mesmo modo que tem candidato que se acha o próprio Messias ou seu enviado, enquanto os outros são tidos como Barrabás.
Não tenho a pretensão de fazer a cabeça de ninguém, nem a presunção de achar que só o meu é um voto consciente. Mas não é preciso abrir mão das próprias convicções para se ter cuidado com as ameaças à democracia que conseguimos construir. Ela é frágil e imperfeita, mas é dentro dos seus domínios que se tem a liberdade até para o moído eleitoral, que tem hora que nem o cristão aguenta. Sem respeito aos valores e princípios da convivência democrática, direitos e pessoas podem ser esmagados nas moendas dos totalitarismos, independente da cor que se pintem as moendas, independente da qualidade dos cristãos ou não cristãos que por elas podem ser esmagados.

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