– Por que bailes de formatura de
hoje em dia são assim? Esta pergunta pulsava na minha mente, enquanto eu
aguardava, quase no fim da fila, a descida de minha filha. Não que o barulho
das buzinas ou das claques me aborrecessem. Muito pelo contrário. Nada no mundo
gritaria mais alto que a imensa alegria de recebê-la ao pé da escada, em meio
aos novos bacharéis em Direito. A pergunta era de sincero interesse em saber
mais sobre a gênese desse novo formato de evento, assim como fico curioso sobre
quem inventou que aula da saudade é festa à fantasia.
Entre as coreografias da descida,
uma trouxe a versão funk da Bella Ciao. Jovens com máscaras de Salvador
Dali e macacões como os utilizados pelos protagonistas da série espanhola que
reavivou a famosa canção popular italiana. Melodia, ritmo e dança contagiaram
formandos e convidados. Já a letra da música não era bem a de um hino de
resistência, marca registrada da canção.
Especula-se que Bella Ciao,
já conhecida no fim do século XIX, teria surgido como canto sobre o sofrimento
do trabalho em plantações de arroz. Anos depois, passou a ser entoada como
protesto contra a Primeira Guerra Mundial, até se tornar símbolo da Resistência
italiana contra o fascismo, durante a Segunda Grande Guerra, inserida no
contexto histórico da resistência europeia à ocupação nazista, e que
transformou pessoas de diferentes orientações em partigiani, como eram
conhecidos os membros da Resistência.
O texto da canção apresenta um homem
que, ao se deparar com o invasor, pede que um partigiano o leve para o
campo de batalha. Ele se despede da amada – daí a repetição do bella ciao –,
com a consciência de que pode morrer em combate e, caso isso aconteça, pede
a ela que o enterre no alto da montanha, à sombra de uma flor. Assim, todos que
por ali passarem contemplarão a bela flor da resistência, de quem entregou a
vida pela liberdade.
Os anos que se seguiram à Segunda
Guerra fizeram a flor do canto partigiano multiplicar-se em flores da
resistência de vários povos. Bella ciao ganhou o mundo, traduzida para
vários idiomas, cantada em manifestações populares, como as que se deram em
muitos países, no emblemático ano de 1968. Foi gravada por intérpretes
consagrados, como Yves Montand e Mercedes Sosa, antes de emocionar como tema
musical em La Casa de Papel, e ser parodiada pela torcida brasileira, na Copa
da Rússia, para zoar os argentinos que se despediram do torneio primeiro que
nossa seleção.
Tamanha popularização talvez
explique porque Bella Ciao tenha virado funk e viralizado na internet.
Um dos autores da versão comentou que a história da canção tem a ver com a do
funk, como expressão cultural que luta contra o preconceito e pela liberdade de
expressão. O funk pode ser um movimento libertador e de resistência, em que
muitas vozes silenciadas pela sociedade passam a ter um papel de protagonismo.
Mas até que ponto a letra de uma música que se refere a mulheres como “essas
malandra que só quer vrau” pode contribuir para o empoderamento delas?
Empoderar é conseguir poder e, no caso
das mulheres, tornar-se mais poderosas. Mas o poder, como refletiu Foucault,
não é algo que a gente possui ou retira de uma única fonte; ele se exerce nas
múltiplas relações humanas. Sua prática pode ser instrumento de emancipação ou
dominação. Seu exercício pode ser percebido, por exemplo, na educação machista,
que diz “prenda sua cabrita, que meu bode está solto”, ou na manobra de se
aproveitar de um plantão judiciário para tentar desmanchar a decisão de um
Tribunal.
O movimento funk não está desligado
do mundo, com seus valores e preconceitos, nem da prática do poder, com suas
manobras e contradições. Por isso, não tiro a razão de quem denuncia a
hipocrisia dos que condenam o funk pela erotização precoce, e não fazem a mesma
crítica em relação a novelas exibidas na TV aberta. Mas não posso negar que o
funk, assim como outras expressões culturais, tanto pode atentar contra a
dignidade humana, quando transforma a pessoa em objeto, quanto pode ser para
muitos uma nova flor da resistência.
Empoderar-se mas sem perder la resistencia!
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirótimo texto! gostaria de pontuar que a "malandra" tem todo direito de "querer vrau" quanto os malandros. E essa é uma das lutas das mulheres, o direito ao desejo sexual.
ResponderExcluirSão muitas questões envolvidas. Beijos!