O que digo e não faço


Não vendo a hora de chegarem as férias, meu corpo, que não é mais um seminovo, emite sinais de fadiga. Dói o ombro, doem as costas, e a mente começa a achar que o trabalho está exigindo mais do que ela pode oferecer. É como se algumas partes do corpo se juntassem para protestar contra a língua de quem muito fala sobre a necessidade de aproveitar o tempo livre, mas não pratica o que diz.

Viver bem o tempo livre é mais que tirar férias todo ano. Giuseppe Mattai observa que, no século XX, a revolução industrial e as novas tecnologias geraram a impressão de que os benefícios do tempo livre e criativo seriam acessíveis a todos os trabalhadores. Com as máquinas para fazer o  trabalho pesado e repetitivo, sobraria tempo para desenvolvermos o que de melhor e de humano trazemos dentro de nós.

A realidade, porém, fez o entusiamo virar desencanto. A alma do sistema produtivo continuou sendo a mais-valia, e a produtividade, a medida do ser humano. Nesse cenário, o tempo que sobra é regido pela escravidão ao lucro, e não pela liberdade do lúdico; as festas se degradam na manipulação do pão e circo; o esporte é explorado como negócio da China – ou quem sabe, da Rússia –,  e viagens são parte do turismo de massa ou do mito do consumismo romântico.

Yuval Nohah Harari fala sobre esse mito. Diz que a elite do antigo Egito dissipou tesouros para construir pirâmides e mumificar cadáveres, mas ninguém cogitava sair do país para fazer compras na Babilônia ou esquiar na Fenícia. Hoje, porém, algumas pessoas gastam muito dinheiro com férias no exterior por acreditarem nesse mito, que simboliza o casamento do romantismo com o consumismo.

O romantismo instiga à variedade de experiências. Experimentar relacionamentos, provar novos sabores, sair da rotina para abrir o leque de emoções. O consumismo diz que o vazio dentro de nós se preenche comprando coisas; que para sermos felizes, precisamos ter aquilo que nos falta, sejam produtos como um carro do ano ou roupas novas, sejam serviços como terapia de casais ou aulas de etiqueta.

Do casamento entre romantismo e consumismo nasce um mercado explorado pela indústria do turismo. Mais do que viagens mundo afora, ela comercializa novas experiências. Se um casal rico está entendiado, o marido leva a mulher a Paris que, no mito do consumismo romântico, é mais que uma cidade, é quimera de felicidade. Se fosse no mundo antigo, talvez o esposo construísse para ela um jardim suspenso ou uma tumba, sonhos de consumo daquele tempo.

Mas nem todo mundo tem condição de bancar o amor com monumentos suntuosos, como na antiguidade, ou viagens caras para a amada, nos dias de hoje. Mais profundo e barato que os excessos do consumismo romântico – mito que, por si só, não garante a satisfação do freguês ou o dinheiro de volta –, é cultivar dentro de si uma espiritualidade do lúdico, que leva a uma prática libertadora da vivência do tempo livre.

A espiritualidade do lúdico é viver a experiência divina como Sabedoria Brincante. Não é  transformar religião em espetáculo, mas a consciência de que o lúdico faz parte não só da criação, mas da redenção do mundo, obras de um amor absolutamente livre, que se dá para além da necessidade e da obrigação. É buscar significado nos mistérios a partir de uma atitude lúdica, pois, como diz Harvey Cox, “só aprendendo a nos rirmos da desesperança que nos rodeia é que podemos tocar a orla da túnica da esperança.”

Na vivência dessa espiritualidade, tempo livre não é tempo vazio. É fugir do automatismo das ações cotidianas, ter contato com a natureza, aproveitar diversões e festas com autonomia, viver com alegria as relações interpessoais. Quantos de nós temos bem perto uma montanha, o mar ou um riacho, mas não nos damos tempo para desfrutá-los. Quantos de nós temos bem pertinho os que amamos, mas vivemos num entra e sai de casa para o trabalho, e sequer conseguimos realmente nos encontrar.

Prestes a gozar as férias, ao menos não me dói a consciência de não poder levar minha mulher a Paris, desejo que ela não tem e por isso, da frustração de não tirar uma selfie no terreiro da Torre Eiffel para postar no facebook, ela não tem perigo de morrer. Assim, só peço a Deus alívio para as dores do corpo, e sabedoria para, no tempo livre e com aqueles que amo, viver bem o que eu digo e muitas vezes não faço.

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