Julgamento e milagre das formigas


O Padre Manoel Bernardes conta a história de um extraordinário pleito acontecido no Maranhão. Um caso referido por vários autores, inclusive no campo jurídico, mas que peço licença para em poucas linhas recontar. Mais que um tribunal formado por viventes humanos, a história exemplar é do julgamento e milagre das formigas.

Num mosteiro na Província de Piedade, um grupo de frades franciscanos vivia sua vida de trabalho, estudo e oração, quando sua rotina foi alterada pela invasão de visitantes inesperados. As formigas saíram dos seus domínios subterrâneos, para escavacar as paredes do convento e furtar a farinha de trigo destinada a fazer o pão daqueles servos de Deus.

Sentido-se ameaçados, alguns frades pensaram em dar um basta, de uma vez por todas, àqueles delitos de formigas delinquentes. Outros, porém, saíram em defesa dos diminutos animais, lembrando que, se o seu Seráfico Patriarca chamava até o lobo de irmão, não seria diferente o sentimento fraterno com as formiguinhas.

Formaram-se, então, duas facções. Os partidários da defesa da vida dos insetos, e os do seu extermínio. Como não houve consenso, resolveram fazer o julgamento das formigas perante o tribunal da Divina Providência. Escolheram advogados de acusação e defesa, e o Prelado tornou-se o juiz. Em nome da Suprema Equidade, cabia-lhe proferir o veredito.

No dia do julgamento, falou primeiro a acusação. Disse que aqueles animais, de espírito contrário ao Evangelho, procediam como ladrões formigueiros. Por isso, o Pai Francisco não os teria na conta de irmãos. Não bastasse isso, eles agiam com violência, tentando arruinar a morada dos frades. Não havia outra saída a não ser exterminá-los.

A defesa contrapôs seus argumentos. As formigas, recebendo a vida do Criador, tinham o direito natural de conservá-la. Elas também eram exemplos de virtudes como trabalho e dedicação, carregando peso maior que suas forças. Se foram infiéis furtando farinha, mais graves eram as iniquidades humanas. Além disso, tinham tomado posse do lugar antes dos frades.

Em seguida, o juiz pronunciou a sentença. Como as terras eram extensas, determinou que os frades demarcassem um local para a morada das formigas. Estas, sob pena de excomunhão, deviam deixar as dependências do convento. A decisão preservava o direito dos religiosos, de permanência no local para semear a Boa Nova, sem violar o direito natural das formigas.

Foi então que o milagre aconteceu, revelando que o julgamento agradou o coração do Criador. Logo que um monge foi intimar as formigas da sentença, anunciando a decisão na entrada dos formigueiros, milhares e milhares delas, em longas e grossas fileiras, saíram para habitar no local demarcado, deixando de molestar aqueles santos religiosos.

Em maio, faço vinte e cinco anos como juiz. Quantas histórias tenho ouvido na sala de audiência. Muitas vidas dominadas pelo trabalho alienado como o da formiga, não daquela legião das criaturas do milagre de Piedade, mas da fábula da cigarra e da formiga que, no dizer de Rubem Alves, expressa a ideologia que esconde a realidade de pessoas trabalhando sob condições que não escolheram, construindo um mundo que não desejam.

Desse tempo, muitas histórias também tenho para contar. Mesmo sem atingir o ideal de Calamandrei, de uma justiça ao ar livre, sem portas fechadas, armei a tenda da justiça debaixo de uma árvore, para tomar o depoimento de uma pessoa, deitada na maca de uma ambulância. Para uma petição em verso, despachei em forma de trova, e deferi requerimento de advogados, para terminarem a audiência com recitação de poesia.

Algumas dessas histórias podem até não parecer críveis. Mas tanto a verdade, para ser verdade, quanto o milagre, para ser milagre, não precisam ser verossímeis, como o extraordinário pleito acontecido em Piedade. Acreditar neles vale mais que tentar investigá-los. Que o Criador dos monges e das formigas me faça nunca desacreditar na verdade da frágil justiça humana, e no milagre da vida que nos é dada a viver a cada dia.

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