Deus não castiga nunca?


Em seu programa de rádio, padre Reginaldo Manzotti agradeceu por ter sido corrigido pelo Frei Clodovis Boff. O sacerdote ia escrever em um dos seus livros, que Deus não castiga nunca, e o teólogo o questionou: você tem certeza disso? Confira algumas passagens bíblicas e você vai ver que, por amor, Deus castiga, não com o castigo humano, mas com o castigo divino, distinção que, para mim, não ficou muito clara com os exemplos trazidos pelo padre.
Naquele programa, ele fazia sua reflexão sobre a experiência de Deus, a partir da leitura de um texto do Eclesiástico. Tomando as palavras do texto sagrado, temperadas com pitadas de sua retórica pessoal, o sacerdote fazia a seguinte leitura:  assim como Deus é bondoso, Ele também é duro para castigar. Ele está sempre pronto para ter misericórdia, mas cada pessoa será tratada de acordo com o que ela faz.
Em reforço de seus argumentos, lembrou a história de Ananias e Safira, narrada nos Atos dos Apóstolos. A morte fulminante do marido, seguida da morte da mulher, interpretadas como castigo, pela mentira ao Espírito Santo, ao venderem uma propriedade, ficarem com parte do dinheiro, e levarem apenas o restante aos pés dos apóstolos, mesmo não estando obrigados a isso. O narrador arremata que toda a igreja e os que ficaram sabendo dessa história espantaram-se.
Diz um comentarista que o autor desse texto pretendeu compor uma narrativa densa e dramática, que pode ser assistida como uma representação teatral condensada em momentos de  clímax, saltando-se o intermédio: “Primeiro ato: interrogatório conciso, morte repentina no palco, imediatamente saem dos bastidores os coveiros e o levam. Segundo ato: novo interrogatório reduzido, morte repentina, os coveiros ao voltar a levam. Estupor e espanto do público.”
Também fico chocado ao ler esse episódio. Como entender a morte de alguém como  execução sumária do castigo divino? É lícito imaginar a balança da justiça divina, com um prato da misericórdia, e outro, do castigo? E as injustiças do mundo sem punição imediata? Gente a fazer coisa ruim e, diferente da trilha da novela, parece que, nem sempre, tudo o que você faz, um dia volta para você. Tem até gente que continua a matar gente em Jerusalém, e invoca a vontade de Deus sobre quem é o legítimo herdeiro da Terra Santa.
Sei que o mistério é sempre maior que a tentativa de explicar o mistério. Deus pode até parecer impassível diante de algumas injustiças, ou seletivo na aplicação do castigo. Mas sei que Ele tem seu tempo, sua misericórdia e sua justiça, que não se comparam com as nossas. Mesmo assim, diante do mistério, tenho mais perguntas do que respostas prontas. No fundo, no fundo, minhas dúvidas não são diferentes das questões postas pelo poeta Leandro Gomes de Barros, lindamente recitado por Ariano Suassuna:

“Se eu conversasse com Deus
Iria lhe perguntar:
Por que é que sofremos tanto
Quando viemos pra cá?
Que dívida é essa
Que o homem tem que morrer pra pagar?
Perguntaria também
Como é que Ele é feito
Que não dorme, que não come
E assim vive satisfeito.
Por que foi que Ele não fez
A gente do mesmo jeito?
Por que existem uns felizes
E outros que sofrem tanto?
Nascidos do mesmo jeito,
Criados no mesmo canto.
Quem foi temperar o choro
E acabou salgando o pranto?”

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