De meninos e ursos: Hadouken!


Então subiu dali a Betel; e, subindo ele pelo caminho, uns meninos saíram da cidade, e zombavam dele, e diziam-lhe: Sobe, careca; sobe, careca! E, virando-se ele para trás, os viu, e os amaldiçoou no nome do Senhor; então duas ursas saíram do bosque, e despedaçaram quarenta e dois daqueles meninos.

Ao ler esta passagem bíblica, meu pai não se continha. Curioso e questionador, depois que cochilava o Jornal Nacional e ia para a cama antes da novela, despertava no meio da madrugada e ocupava a insônia com suas leituras. Folheava meus livros de Direito, mas se detinha mesmo nos versos da Bíblia que o fascinavam. Não se conformava, porém, que Eliseu, em nome de Deus, tivesse causado a morte violenta daqueles meninos, só por lhe chamarem de careca. Eu, com minha soberba juvenil, procurava convencê-lo de que o texto expressava apenas uma visão ultrapassada, de um Deus ameaçador, cantado pelo salmista como o Senhor a quem a vingança pertence. Mas quem era eu, desprovido de amadurecimento teológico e sem o auxílio providencial do mestre Google, para ter a petulância de querer dar lições a meu pai. 

Até hoje discute-se sobre a mensagem que aquele texto quer passar. A intenção do autor, dizem alguns, não é falar da crueldade do profeta, mas das consequências da blasfêmia contra um emissário de Deus. Para outros, nem se trata de diabrura infantil, pois meninos não seria a melhor tradução do termo original. Seriam rapazes violentos, como os das gangues de rua que, em grande número e num lugar perigoso, não só cometeram blasfêmia, mas ameaçaram a integridade física do profeta, que não teve outra saída a não ser rogar-lhes uma praga em legítima defesa, para mostrar que quem zomba de um homem de Deus não fica impune.

Pelo sim, pelo não, é melhor não simplificar demais a riqueza das mensagens que se pode extrair de um texto sagrado, ainda mais quando compõe a desconcertante estatística de mortes violentas narradas na Bíblia. Pelas contas de Steve Wells, do Gênesis aos Atos, que descreve o fim trágico de Herodes, ferido de morte pelo Anjo do Senhor, e comido pelos vermes, por não ter reconhecido a glória de Deus, temos mais de dois milhões desse tipo de morte, sem contar com as pessoas afogadas no dilúvio. Segundo Wells, se levarmos em conta as mortes causadas por Deus ou em seu nome, as páginas da Bíblia sinalizam que Deus matou mais que o diabo.

Em nosso cotidiano, violência e morte têm outras causas e expressões, mas também produzem uma estatística alarmante. Com menos de três por cento da população do planeta, no Brasil cometemos quase treze por cento dos assassinatos do mundo. Muitas comunidades estão dominadas por grupos armados, sendo reféns do tráfico de drogas. O deus dinheiro traça as fronteiras entre segurança e insegurança, e compra caro o direito de acesso à justiça. Rapazes recrutados por bandos de foras da lei, e jovens policiais, nossas mãos armadas em nome da lei, são baixas constantes de uma guerra sem glória, enquanto inocentes são vítimas de balas perdidas. Tudo piora com a corrupção sistêmica, de dinheiro na mala ou na cueca, do ouro negro do nosso pré-sal virando lama nas negociatas dos ladrões do povo.

Por essas e outras, o carnaval serviu de palco para protestos, com destaque para a escola de samba campeã da cidade maravilhosa que, no mesmo período, foi cenário de violência e licenciosidade dignas de fazer cristão virar estátua de sal. Mas como não era de se rogar pela descida de enxofre e fogo do céu, como em Sodoma e Gomorra, clamaram pelo auxílio de tropas federais para manter a aparente trégua à sombra das baionetas. E na Quaresma, nossa Igreja propõe o tema da superação à violência, lembrando que em Deus somos todos irmãos.

Todos sabemos da dificuldade no objetivo de construir a fraternidade, promovendo a cultura da paz, da reconciliação e da justiça, à luz da Palavra de Deus, como caminho de superação da violência. Fosse fácil, bastariam palavras adocicadas de pregadores da religião do bem-estar, que a ninguém desagrada. Afinal, lutar contra as várias feras da violência não é um jogo de meninos, em que se pode a qualquer momento pedir a ajuda de um urso ou, como num videogame muito popular anos atrás, por meio da concentração de toda força de vontade canalizada em nossas mãos, criar uma onda de energia para vencer o inimigo: Hadouken!                             
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