Oitenta e oito


Dias atrás, recebi uma mensagem de um amigo. Bom dia, dizia ele no whatsapp. Estamos organizando uma comemoração dos trinta anos de formados da nossa turma de Direito. Minha nossa, pensei eu, já faz tudo isso! Minhas lembranças, então, foram parar no dia sete de janeiro de oitenta e oito.
Nas cerimônias daquele dia, estava marcada uma missa pela manhã, de ação de graças e bênçãos dos anéis. Mesmo com tanto a agradecer, eu tinha certa dificuldade na minha particular mobilidade urbana, em meus trajetos de coletivo, do Valentina Figueiredo ao centro da cidade, e também porque não tinha anel para benzer, achei melhor não ir à missa.
À tarde, porém, estava eu, de paletó e gravata, chacoalhando dentro de um ônibus – não era ainda da Setusa, estatal criada somente depois das manifestações de agosto daquele ano –, para chegar a tempo ao prédio da antiga Faculdade de Direito. A aula da saudade, marcada para começar na hora da Ave-Maria, foi celebrada no rito antigo: composição protocolar da mesa das autoridades e discurso proferido pela professora ministrante; o modelo pós-moderno, de rapazes e moças vestidos com fantasias, isso ainda não havia. 

A colação de grau foi logo na tarde seguinte, no Espaço Cultural. Entrei de braços dados com minha mãe. Revendo as fotos, além da saudade que me aperta o peito, vejo com mais nitidez a razão das pessoas que percebem os traços fisionômicos que dela herdei. Tive a honra de ser orador da turma. Logo eu, que quase não abria a boca em sala de aula. As palavras engasgadas na garganta não conseguiam ser pronunciadas, sufocadas por uma timidez crônica, que chegava a atrapalhar meu convívio social. De cima do palco, a visão dos ouvintes nas poltronas azuis que afundavam ao sentar, lembrava peixinhos no mar que, como cantam os Tribalistas, são flores sem o chão, aquarela colorindo a água.
O mote do discurso, extraí das páginas de Exupéry: é preciso ritos.[1] O direito, rito institucionalizado para pacificar conflitos da vida. A vida, grande rito do ser humano na construção do mundo e de si mesmo, a renovar o rito da criação, nos ritos cotidianos do trabalho e do amor, da guerra e da paz. Naquele momento de transfiguração, a oração convidava a uma descida às dores da Nova República, com suas crises econômica, política e moral, e ecoava as palavras de Tancredo Neves: “a esperança é o único patrimônio dos deserdados, e é a ela que recorrem as Nações, ao ressurgirem dos desastres históricos.” Depois dos agradecimentos aos que nos permitiram chegar até ali, o discurso convidava os bacharelandos a honrar a atuação como profissionais de direito, colocando a vida acima da lei, e invocando os versos de Drummond, que anos depois tomei como subtítulo para meu primeiro livro[2]: as leis não bastam; os lírios não nascem da lei.     
Caiu a noite, e já perto das doze badaladas, tivemos o baile de formatura, no Jangada Clube. A exemplo da aula da saudade, no baile não tínhamos ainda as expressões pós-modernas de descida da cada um da escada, não raro ao som do batidão que domina o corpo, e faz bumbum tremer, subir e descer até o chão, com o acompanhamento das buzinas de ar ou cornetas de formatura. Valsar, com minha irmã, foi sincera expressão de amor fraterno, mas também não deixou de ser sintoma da ausência de um relacionamento sério, como se diz no facebook, talvez causada por dificuldades horoscópico-zodiacais. Só sei que minha família e meus amigos se alegraram com minha alegria, e a foto de meu pai, que até hoje tenho pendurada na parede do escritório aqui em casa, imortaliza um instante daquele estado de graça. 
Tanta coisa se passou desde então. Quantas mudanças no mundo jurídico, principalmente depois da Constituição Federal, nascida também em oitenta e oito. Para se ter uma ideia, a lei e a ciência do direito, na época em que estudamos, diziam que o homem era o cabeça do casal, e que havia filho legítimo e ilegítimo. Tivemos muito o que aprender e desaprender de oitenta e oito para cá. E nestes tempos, ainda marcados por desigualdade, violência e corrupção, teremos muito mais a fazer, nos trinta anos que virão.                                                                          




[2]     Livro Direito, mito e metáfora: os lírios não nascem da lei, publicado em 1999.

                                      






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