Mais que uma translação



Na escola primária, aprendi que a Terra realiza basicamente dois movimentos. Em vinte e quatro horas, gira em torno do próprio eixo, donde vem a alternância entre o dia e a noite. Em trezentos e sessenta e cinco dias e algumas horas, dá a volta ao redor do sol, criando o ano com suas estações. No meu pensar de menino, aquela lição servia mais como decoreba para prova, era apenas um fenômeno cósmico distante de mim. Mas depois de muito rodear o sol, transportado pela Mãe Terra, percebo que o findar de cada ano é mais do que uma translação. Às vezes parece com o epílogo de uma série de TV, daquelas que deixam a gente triste pelo fim de uma temporada, mas ansioso para outra começar.

Numa das últimas que assisti, habitantes de uma cidadezinha do faroeste americano esperam a vinda de um Pastor para fazer funcionar sua igreja. Ele, porém, só chega depois que o lugarejo é violentamente atacado, e corajosamente defendido, pelo chumbo grosso das mulheres do lugar. Quando estão para enterrar seus mortos, ele se apresenta e, depois de ouvir o comentário de uma moradora, de que teria chegado tarde demais, o Pastor diz esperar que não. Pega seu caderninho, e recita uns versos de Yehudah Halevi, que dizem mais ou menos assim:

“Dá muito medo amar o que a morte pode tocar. Dá muito medo amar, esperar, sonhar, ser. Ser e também perder. É uma coisa para tolos, isso. E algo sagrado. É uma dádiva, amar. Pois a sua vida foi vivida em mim. O seu riso, um dia me animou. A sua  palavra foi uma dádiva para mim. Lembrar disso é uma alegria dolorosa. É uma coisa humana, o amor. E também algo sagrado: amar o que a morte tocou.”

Cada um de nós é vivente que ama e que morre, e que ama o que morre. Assim, parece terrível amar o que a morte vai levar. A mulher, aqui em casa, vive dizendo que a vida da gente é tão boa que dá medo, o que me lembra um pensamento de Machado de Assis: “ninguém se fie da felicidade presente; há nela uma gota da baba de Caim.”

Pensar assim não é acreditar que a gente não merece ser feliz. Não é fazer como alguns que, quando conseguem o que desejam, sentem-se culpados por estarem bem, enquanto outros não estão, nem achar que coisas boas que acontecem com a gente são boas demais para serem verdade. A questão é que, mais dia, menos dia, a finitude humana, como no caso do casamento, separa até aquilo que Deus uniu. Essa certeza produz pensamentos agridoces, recheados da alegria dolorosa de que fala o poema.
Especialmente em fim de ano, muitos desses pensamentos se misturam com sonhos, emoções, frustrações e desejos. Nesta época, mesmo se às vezes o ouvido se incomoda com os ruídos da mercancia natalina – não raro com a repetição de alguma versão irritante do “então é Natal, e o que você fez?” –, o coração, em seu silêncio profundo, não deixa de perguntar sobre o que de bom cada um deixou de fazer, ou o que pode ser feito para endireitar o que há de vir.

As respostas não são simples, nem são as mesmas para todos. Cada qual, do seu jeito, há de buscá-las no que lhe dá sentido à vida ou, quem sabe, nas razões do coração que, como disse Pascal, a própria razão desconhece. Eu, de minha parte, não as procuro no encarnado do Natal “cocacolizado”, mesmo que este seja estética e emotivamente agradável. Prefiro tentar encontrá-las no mistério do Amor que se faz Menino, para salvar a todos e a cada um, Amor que não faz acepção de pessoas.

Só esse Amor sagrado é capaz de dar sentido ao amar humano. Amor que não hesitou em amar o que a morte pode tocar, a ponto de derramar seu sangue, para tornar eterno o que naturalmente era mortal. Esse Amor é Dádiva Perfeita, pela qual Céus
e Terra foram criados. É ele que faz a jornada humana no regaço da Terra ser bem mais que uma viagem sem destino no dorso de um planeta, a repetir seu giro ao redor do sol.

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