Natal do Senhor



Antes de ensinar aos alunos do coral, meu pai ensaiava com a gente em casa, as diversas vozes do orfeão:


      O nosso menino nasceu em Belém
      Nasceu tão somente para querer bem...


A letra é de um poema de Manuel Bandeira. Simples e bela, expressa o sentido profundo do mistério da encarnação. O menino nasceu sobre as palhas e a mãe sabia que ele era divino. Mas nem tudo é festa e luz. O menino vem para sofrer a morte na cruz. Por nós ele aceita o humano destino. No Natal, então, devemos louvar a glória de Jesus menino.

Bem diferente têm sido algumas expressões de festas natalinas que fabricamos ao longo dos tempos. Canções sobre a neve caindo ou o nariz encarnado de uma rena, mensagens melosas de bondades episódicas, comerciais de louvor e glória ao consumismo do Noel.

Claro que numa sociedade consumista não dá para varrer do mapa o louvor ao consumo, nem condenar o desperdício ao exílio. Lembra Baudrillard que todas as sociedades consomem além do necessário. No consumo do supérfluo o indivíduo e a sociedade se sentem não apenas existir, mas 
viver. Como diz Shakespeare no Rei Lear: “Oh, não discutam a necessidade! O mais pobre dos mendigos possui ainda algo de supérfluo na mais miserável coisa. Reduzam a natureza às necessidades da natureza e o homem ficará reduzido ao animal: a sua vida deixará de ter valor. Compreendes por acaso que necessitamos de um pequeno excesso para existir?”

Nem os cultos religiosos estão livres de pequenos excessos. Festas religiosas não se alimentam somente de preces. Paramentos e ornamentos, flores e luzes, imagens e fogos de artifício, tudo isso tem um preço, e não se pode dizer que se resuma ao estritamente necessário. Ao lado dos gastos com o culto, pratica-se o consumo religioso. Símbolos do sagrado vendidos como joias ou decoração, presépios tão caros, que em nada lembram a pobreza das palhas do nascimento do menino. De certo modo, descristianizamos o que o Ocidente levou séculos para cristianizar.

No 25 de dezembro comemorava-se o nascimento do deus sol invencível, o que era estranho para os cristãos, que não celebravam nascimento de deuses. Com nossos santos, por exemplo, o costume é celebrar o dia da morte, dia de sua páscoa. Mas depois no ano 300 da era Cristã, começou o processo de cristianização dessa data. Passamos então a celebrar a festa, como diz Santo Agostinho, “não por causa deste sol, mas por causa daquele que fez este sol.”

Jesus Cristo, a luz do mundo, é o Verbo encarnado que nasceu tão somente para querer bem. No santo ventre de Maria, a humanidade se fez grávida do Amor Infinito, num admirável intercâmbio entre o divino e o humano, mistério que habita o centro da celebração do Natal. Ao aceitar, por nós, o humano destino, o Verbo assume o que é nosso e nos dá o que é seu e, ao mesmo tempo, vindo para sofrer a morte na cruz, o Salvador do mundo nos regenera a todos, como filhos amados de Deus.

A natividade de Jesus é antes de tudo Natale Domini, o Natal do Senhor. O menino a quem rendemos glória é o Salvador de cristãos e não cristãos, de meninos e homens refugiados, de mulheres e meninas de Aleppo. Ao aceitar o humano destino, o Verbo encarnado resgata a dignidade de todos, fazendo do Natal a celebração não só do divino, mas do humano em toda a sua plenitude, e a humanidade, grávida do amor de Deus, é convidada a, respeitando as diferenças, vencer as injustiças, as guerras e a destruição para, respeitando as diferenças, buscar viver a comunhão fraterna, sem a qual o Natal não é Natal.

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