Justiça poética


Visões que na alma o céu do exílio incuba
Mortais visões! Fuzila o azul infando...”




Estes versos, que abrem o soneto Banzo, de Raimundo Correia, sempre me lembram as aulas de Teoria da Literatura, primeira disciplina que me foi dada para lecionar na Faculdade. Eu havia terminado o curso de Letras, e nossa professora, que se afastou para assumir a presidência do sindicato da categoria, indicou meu nome para substituí-la como professor-assistente.
Texto na mão, eu convidada a turma a declamarmos o poema, sem qualquer preocupação que não fosse o prazer da leitura. Tudo o que pedia era que procurássemos recitar o melhor possível, tentando perceber a beleza daquela massa fônica e contemplar as “imagens pintadas com palavras”, para me valer de uma expressão de Manoel de Barros, quando diz que aprendeu com o Padre Vieira, que imagens assim são para “se ver de ouvir.”
Depois da leitura lúdica, fatiávamos o texto, na busca de sua compreensão. Fazíamos a escansão dos decassílabos, colocávamos alguns versos na ordem direta, aqui e acolá com uma pitada de análise sintática, ao mesmo tempo pesquisando o significado das palavras novas do rico vocabulário do soneto. Ao final, fazíamos nova leitura em voz alta, procurando unir beleza e compreensão do que estávamos recitando.
Além dos elementos do texto, procurávamos informações sobre o contexto, além de elementos pré-textuais, incluindo a biografia do autor. Este, como diz a teoria hermenêutica, pode ser visto como um elemento ocasional, pois uma vez gerado, o texto corta o cordão umbilical com o seu criador. O cuidado, porém, é que o leitor respeite a alteridade do texto, deixe-o falar, e não o transforme em mero pretexto para que só o intérprete fale.
Também não se há de esquecer que, mesmo “ocasional”, o autor não pode ser desprezado para compreensão de sua obra. Se “tudo que é dito é dito por alguém”, conhecer a biografia desse alguém pode ajudar a entender o que ele diz. No caso do poeta parnasiano, sua história de vida é iluminada e iluminadora.
Raimundo Correia foi poeta e juiz. Tão cuidadoso com as consequências de suas decisões, que sobre ele surgiram várias histórias, como as registradas na coletânea Brasil anedótico, de Humberto de Campos, extraídas de discursos proferidos na Academia Brasileira de Letras. Nelas são destacadas diversas virtudes do poeta juiz, algumas até exageradas, se é que pode haver excesso nas virtudes.
Conta-se que ele era de um escrúpulo quase doentio ao lavrar suas decisões. Teria passado nove noites sem dormir, antes de se averbar suspeito num processo cujo autor era o amigo Medeiros e Albuquerque. No íntimo, ele achava que Medeiros tinha razão. Mas nisso residia o escrúpulo que fez o poeta confessar ao amigo: “há nove noites eu pergunto a mim mesmo: mas eu acho que o Medeiros tem razão porque tem mesmo, ou é porque o Medeiros é meu amigo?”
Em outra história, Humberto de Campos destaca o lado cristão do juiz poeta. O empregado de um açougueiro tinha ferido o patrão a facão. Raimundo Correia mandou chamar as partes. Disse que ia absolver o culpado, porque ele tinha sido ofendido no insulto. Mas tinha uma condição: que os dois não guardassem ódio. Fez, então, uma preleção sobre a violência, e terminou:
                  “- Vocês têm religião?
                  - Sim, senhor.
                   E aproximando-os:
                  -Então, vão, e sejam amigos...”
Ouvi nesses dias, no comentário de um jornalista sobre a prisão de ex-governadores por atos de corrupção, comemorada por parte da população, que esse episódio pode ser visto como parte de uma justiça poética, na qual as virtudes triunfam sobre os crimes. Mas de nada adiantará a euforia, se não concretizarmos as consequências desse triunfo. Talvez seja o caso de nos inspiramos em Raimundo Correia e termos mais cuidado com as consequências de nossas decisões, opção fundamental para concretizar a justiça poética, sem a qual justiça não é justiça.

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