Grande Sertão.

                                 

Desde que me entendi por gente, tomei gosto pelos livros. Até nas brincadeiras de criança eu tinha fascínio por eles. E quando ganhava um ainda no plástico... Ah! Como era bom tirar-lhe a embalagem, acariciar-lhe as páginas, sentir o cheirinho do novo. Nas asas da leitura, sempre viajei pelo mundo sem precisar sair de casa.

Das tantas viagens, ainda me encanta a do Grande Sertão: Veredas. Narrativa que completou sessenta anos, é romance mais que romance, universo rico criado por uma linguagem singular, é o pensar sobre a travessia da vida, vista como invenção coletiva, “mutirão de todos, por todos remexida e temperada,” mesmo que não seja “entendível”.

Além da prosa de Riobaldo, o personagem narrador, repleta de pensamentos profundos, suas histórias de luta, amizade e amor ao lado de Diadorim, algo que sempre me seduz no romance de Guimarães Rosa é a dualidade não maniqueísta entre Deus e o diabo.

O maniqueísmo reparte o mundo em duas bandas: de um lado, o reino do bem e dos bons; do outro, o império do mal e dos maus. Porém, no Grande Sertão, tal qual na parábola bíblica, o joio e o trigo não estão em cercados separados. A gente pode até, como o narrador, carecer que “o bom seja bom e o ruim, ruim, que dum lado esteja o preto e do outro o branco, que o feio fique bem apartado do bonito e a alegria longe da tristeza”, mas a realidade, como ele observa, é que “este mundo é muito misturado.”

No maniqueísmo, há uma equivalência entre o príncipe das trevas e o da luz, e ambos comunicam sua substância a seus súditos, fazendo com que os indivíduos sejam bons ou maus conforme sua origem. Porém, uma ideia assim não cabe na cabeça de quem sabe que Deus é absoluto, e que a pequenez do diabo não pode ser páreo para o Amor Infinito.

Não quero, com isso, subestimar a ação devastadora do mal. Ele está solto no meio do mundo. Com ele, todo cuidado é pouco. E como alerta a Carta de Pedro, devemos estar sóbrios e vigilantes, pois o adversário nos rodeia como um leão a rugir, procurando a quem devorar.

Talvez para não ser devorado pelo demo, moradores do Grande Sertão “desfalam no nome dele – dizem só: o Que-Diga”, ou se referem aos seus apelidos, como “Rincha-Mãe”, “o Muitos-Beiços”, “o Rasga-em-Baixo”, entre tantos. Afinal, falar o nome de alguém não deixa de ser uma invocação, e chamar o diabo pelo apelido é uma tentativa de tapeá-lo. Mas Riobaldo sabe que nesse artifício há muito de exagero e fantasia. O diabo pode até fazer alarde e meter medo, e nesse mundo misturado, “cada hora, de cada dia, a gente aprende uma qualidade nova de medo,” dando a impressão de que o Coisa-Ruim vai triunfar. Mas como diz Riobaldo, “Deus é definitivamente; o demo é o contrário Dele”.

Mesmo dizendo que Ele é “definitivamente”, o narrador também exclama: “Moço!: Deus é paciência. O contrário, é o diabo.” Como o tempo Dele não é impaciente como o nosso, somos tentados a pensar que Deus é passivo, só porque Ele não “arrocha o regulamento,” como diz o Grande Sertão e, em vez de cortar logo o mal pela raiz, deixa o ser o humano livre para amar e desamar.

Também somos tentados a repartir o mundo entre nós e os outros, achando que só é do bem quem está conosco, e quem não reza na nossa cartilha tem parte com o Capiroto. Nesse apartheid insano, mergulhamos o coração no azedume da raiva e do ódio, sem nos darmos conta, como lembra Riobaldo, que “quando se curte raiva de alguém, é a mesma coisa que se autorizar que essa própria pessoa passe durante o tempo governando a ideia e o sentir da gente”, e ainda que “só se pode viver perto de outro, e conhecer outra pessoa, sem perigo de ódio, se a gente tem amor”, pois “qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura.”

Não vale a pena, portanto, remoer sentimentos ruins para dar gosto ao Que-não-Ri. É pura perda de tempo, e tempo, mais do que dinheiro, é a nossa própria vida. Esta, como diz o Grande Sertão, pode até ser “ingrata no macio de si, mas transtaz a esperança mesmo do meio do fel do desespero.”

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