“É uma revolta?"
"Não, Majestade, é uma revolução.”
Assim teria sido o diálogo entre o rei Luís XVI e o duque de Liancourt. Falavam
sobre os acontecimentos que levaram à queda da Bastilha, fato marcante da
Revolução Francesa. A conquista daquela fortaleza medieval transformada
em prisão foi algo espetacular não pelos números envolvidos. Dizem que lá
dentro só havia seis ou sete prisioneiros e poucos canhões que ainda prestavam.
Mas expressava a participação popular na derrubada do absolutismo. O grupo que
tomou a Bastilha não era uma tropa, muito menos de elite. Eram marceneiros,
sapateiros e outros artesãos, gente das camadas populares, mostrando que a
bandeira de luta por novos tempos não havia de ser conduzida apenas pela
burguesia.
A notícia de que um símbolo do poder real tinha sido tomado pelo populacho se
espalhou como um rastro de pólvora pela Europa. E era recebida como algo tão
grandioso, a ponto do filósofo Kant, quando soube do acontecido, pela primeira
vez na vida, atrasar o passeio diário, feito pontualmente às 18 horas.
Era só uma revolta? Não, era uma revolução. Tanto que a queda da Bastilha,
ocorrida num quatorze de julho, há mais de duzentos anos, ainda hoje é
celebrada como grande feriado francês. Neste último, porém, mais uma notícia
vinda da França abalou o mundo, e não foi resultado de uma revolução. Como
resumiu a frase de um site jornalístico, naquele dia, “o inferno tomou conta de
Nice”.
Por volta das dez e meia de noite, numa avenida à beira-mar de uma das praias
mais famosas da França, uma multidão estava reunida para assistir a queima de
fogos. De repente, um caminhão avançou cerca de dois quilômetros no meio das
pessoas, atropelando quem estivesse pela frente, provocando morte e sofrimento,
espalhando medo e sensação de insegurança mundo afora.
O mundo sedento de paz condenou o ataque e expressou solidariedade às
suas vítimas que, no fundo, somos todo nós. O Presidente do Conselho Europeu,
além de lamentar o atentado, observou que se tratava de um trágico paradoxo.
Aqueles homens, mulheres e crianças foram mortos e feridos pela ação do terror,
justamente quando estavam reunidos para celebrar a liberdade, a igualdade e a fraternidade.
Paradoxos trágicos, porém, não existem apenas em ações terroristas. Os mesmos
revolucionários que derrubaram a Bastilha e contribuíram para que o mundo
proclamasse os direitos humanos como direitos universalizáveis, independente de
nacionalidade, religião, gênero e classe social, não empunharam as bandeiras da
liberdade, igualdade e fraternidade sem manchar as mãos com sangue de outros
seres humanos.
Norberto Bobbio, falando sobre o legado da Revolução Francesa, destaca o
testemunho de pensadores sobre aqueles momentos que assinalaram uma verdadeira
virada na história do gênero humano. A primeira fase, segundo Tocqueville, era
“o tempo de juvenil entusiasmo, de orgulho, de paixões generosas e sinceras,
tempo do qual, apesar de todos os erros, os homens iriam conservar eterna
memória, e que, por muito tempo ainda, perturbará o sono dos que querem
subjugar ou corromper os homens.” Kant, por outro lado, condenou o regicídio
como abominação e observou que os revolucionários tinham acumulado, ao mesmo
tempo, miséria e crueldade. No entanto, escreveu que aquela revolução foi de um
povo rico em espiritualidade, cheio do verdadeiro entusiasmo, entendido como
participação de todos no bem, com intensa paixão.
Apaixonar-se pelo bem comum é essencial para fundamentar os direitos humanos
como direitos que possam ser universais. Embora não seja fácil a sua
universalização, em razão do relativismo cultural e das desigualdades
socioeconômicas, essa paixão por um bem que seja de todos requer a
transcendência do individualismo egoísta. Para Thomas Paine, os direitos
humanos não podem ser justificados se nos contentamos com o relativismo da
história, mas somente quando buscamos o momento da origem, quando os seres
humanos, todos eles, sem qualquer distinção, surgiram das mãos do Criador, pois
a “a história nada prova salvo os nossos erros,
dos quais devemos nos libertar. O único ponto de partida para escapar dela é
reafirmar a unidade do gênero humano, que a história dividiu.”
Talvez não seja preciso escapar da história para transcendê-la. Mas penso que é
preciso, todos os dias, reafirmar a unidade do gênero humano, que a história e
o terror insistem em dividir. Bombardear o inimigo e intensificar os aparelhos
de segurança, ainda que encontrem justificativas razoáveis, certamente não são
soluções definitivas para os trágicos paradoxos que ameaçam a paz mundial. Sei
também que não temos todas as respostas nem todos os meios necessários para a
construção de um mundo de paz. Contudo, jamais o construiremos de braços
cruzados. Como aprendi com o Padre Comblin, na história humana nunca há
adequação entre meios e fins, e novos seres humanos hão de ser construídos com
materiais de velhos seres humanos. Mesmo não existindo meios históricos ideais,
pois na precariedade da condição humana tudo é inadequado, “a ação é
imprescindível, a opção inevitável, a escolha necessária”. E a melhor escolha
nunca é combater ódio com ódio, terror com mais terror, mas a ação
imprescindível, cotidiana e apaixonada pela paz. Paz interior, paz em Nice, paz
no mundo.
Comentários
Postar um comentário