Não lembro o ano que isso aconteceu, mas não pensem que é mentira. Quando eu
era menino, e na minha cidade ainda havia cinema fora de shopping, fui assistir
Dio, come ti amo. O filme me fez
chorar, especialmente na cena final, em que Gigliola
Cinquetti corre para o aeroporto e canta a canção de fazer parar avião. Só
tinha chorado assim quando vi Coração de
luto, de Teixeirinha. Mas no Dio come
ti amo havia uma novidade. Antes da exibição da película, fizeram uma
demonstração do sabão Omo, que estava sendo lançado no mercado. Em vez do sabão
em barra, comprado em pedaço na mercearia, lá estava o sabão em pó, fazendo o
branco parecer mais branco, como se fosse um toque de mágica diante de nossos
olhos.
Soube há pouco que Omo é abreviatura de Old
Mother Owl, que significa Velha Mãe Coruja, e que na primeira embalagem
havia a figura de uma coruja, em que as letras “o” representavam os olhos, e o
“m”, o nariz e o bico da ave. A coruja simboliza não só a sabedoria, mas o zelo
materno. Por coincidência, o ingresso para assistir ao filme era cortesia em
homenagem às mães. Mas como a minha não pode me levar ao cinema, coube a uma
irmã postiça me fazer passar por seu filho de mentirinha para, no colo dela, me
deslumbrar com a brancura da demonstração do sabão em pó e me emocionar com a
cena daquele filme.
Fosse hoje, teria como registrar, nas imagens instantâneas do mundo virtual, o
fato que nunca me saiu da memória. Mas naquele tempo, nem passava em minha
cabeça que algum dia haveria internet, nem podia imaginar o que chamamos de
rede social ou jogos virtuais. Minha brincadeira preferida era com bolas
de gude, no quintal de terra, onde cavava buracos para o “bola ou bura”,
e o principal brinquedo não se comprava em loja. Era o carrinho com cabine
feita de lata de óleo, chassi de madeira, aspas como feixes de molas e rodas
recortadas de chinelas velhas.
Uma vez ou outra, ousava uma travessura. Você sabe o que é “pegar morcego” em
carro de boi?! Aquilo dava um prazer, que chego a comparar com o de Marty
MacFly e seu skate, tanto o do passado, que precisava da carona de um
carro, quanto o voador, no De volta para
o futuro. Se não tínhamos como caçar pokemon, dava para pegar
“cascudo” com a mão, num riacho perto de casa. Confesso que às vezes escondia
alguma estripulia, mas não achava que fosse um pecado grave, pois mentia não
para prejudicar alguém, e sim para escapar da pisa de minha santa mãe.
No fundo, sabia que mentir nunca era certo. Como aprendi depois no catecismo,
mentira é sempre condenável por ser profanação da palavra, que deve servir para
comunicar a verdade. Quando alguém mente, rouba do outro a plena capacidade de
conhecer, sem a qual não se pode decidir livremente. Mas também aprendi que
existem mentiras e mentiras, que o tamanho do pecado do mentiroso depende das
circunstâncias em que ele mente, de suas intenções e do prejuízo sofrido por
suas vítimas, e que nem todo aquele que mente deve ser automaticamente
condenado. Vejam o caso de Pedro. Ele não mentiu ao negar Jesus três vezes?!
Diferente, porém, são as mentiras da hipocrisia, da fraude e da traição,
que ferem de morte a justiça e a caridade. Nesse caso, a mentira consiste em
dizer uma falsidade a pessoas que têm o direito de saber a verdade, e fazer
isso com manifesta intenção de enganar ou prejudicar os outros.
Dizia Otto von Bismarck que nunca se mente tanto como em véspera de eleição,
durante a guerra e depois da caça. Às histórias de caçadores ou de pescadores
talvez não se possa dar muito crédito. Mas elas são a mentira da espécie
jactância, que segundo Aristóteles, consiste em exagerar a verdade. Na guerra,
porém, a situação é mais séria. No dizer de Ésquilo, nela a verdade é a
primeira vítima. Fala-se, por exemplo, que muitas vidas têm sido ceifadas com o
uso de drones. Mas quem quer revelar a face oculta da “guerra contra o terror?”
Quanto à política, é comum nos depararmos com farsas e estelionatos eleitorais,
com campanhas que gastam fortunas com marqueteiros para inventar um mundo
virtual que sabemos estar longe do real. Mas não é justo jogar pedras de
hipocrisia apenas em candidatos e marqueteiros, se nós também fazemos parte do
processo eleitoral, e muitas vezes contribuímos com o estelionato de que também
somos vítimas.
Por falar em pedras de hipocrisia, vi nestes dias o caso dos atletas olímpicos
que inventaram uma história de assalto e depois foram pegos na mentira. Ainda
bem que foram desmascarados, pois a verdade deve sempre prevalecer. Não acho
justo, porém, tratar o caso como um linchamento moral. Denunciar o cisco da
mentira no olho do outro, sem primeiro tirar do seu a trave da hipocrisia. E
que atire a primeira pedra quem nunca mentiu na vida.
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