Aprendiz do direito, da justiça e da esperança.

           


Num mês de maio, há 23 anos, ingressei na magistratura, eu, que nunca na vida tinha sonhado ser juiz. Quando menino, jogando bola na rua, até o nome juiz era usado para fazer medo: – Parem já com essa brincadeira, senão vou pedir ao juiz para tomar a bola e proibir esse jogo de vocês. E Juiz do Trabalho?! Naquele tempo eu nem sabia que havia esse tipo de juiz. Na escola sempre fui estudioso, mas nunca me passou pela cabeça fazer o curso de Direito. Meu primeiro vestibular foi para Sociologia e, modéstia à parte, passei com nota boa para qualquer outro curso. Meu pai viajou comigo até a Universidade para fazer a pré-matrícula, mas depois que saiu o resultado do outro vestibular, não hesitei nenhum instante. Melhor fazer Letras, à noite, e trabalhar de dia, ainda que tivesse de viajar por estrada de poeira ou lama, pois era aquele caminho que me permitia ser Regente de Ensino, em caráter precário e temporário, como dizia a portaria assinada pelo Governador Burity, era aquele caminho que me tornava o que eu queria ser, aos dezoito anos, um “bem-sucedido” aprendiz de professor.
            
O tempo e a insistência do meu irmão, porém, conduziram-me a outros caminhos: – Rapaz, tu vais ficar a vida toda como professor? Ele, que também dava aulas, sabia das dificuldades do magistério, da vida dos nossos pais, professores, que sempre honraram a profissão, mas não tinham como se pabular dos contracheques. Enveredei, então, pelas trilhas sinuosas do mundo jurídico. Mas mesmo na Faculdade, quando fui tomado de paixão pelas letras jurídicas, o Direito do Trabalho ainda não me despertava o interesse.
            
Diploma na mão, sem ter recebido orientação ou encaminhamento de ninguém da área, minha prática forense só ocorreu, de fato, no Centro de Direitos Humanos da Diocese. Compartilhar a luta dos trabalhadores por terra e por respeito a direitos sociais básicos foi o que me levou a ingressar na Justiça do Trabalho. Em maio de 1990, tomei posse como servidor. Três anos mais tarde, tornava-me juiz, também num mês de maio.
            
Diferente do meu irmão, que desde que se entendeu por gente dizia que um dia seria médico, minha vocação foi sendo revelada nos chamados que a vida ia anunciando, mas igualzinho a ele, os desígnios de Deus me deram a sorte de continuar professor. Se a sala de audiência me dá a chance de procurar distribuir justiça, que não é luxo nem privilégio, mas condição de vida digna para todos, pois onde há justiça não falta pão nem escola, salário e remédio, a sala de aula é o espaço de compartilhar desejos, de ser ao mesmo tempo mestre e aprendiz. No solo dos corações inquietos dos jovens, na fecundidade de suas mentes criativas e criadoras, procuro lançar sementes do que aprendi nos capítulos dos livros e da vida. Deles recebo o salário do afeto, que não cabe em nenhum contracheque, além de ensinamentos que só a santa rebeldia dos jovens pode nos dar. Isso me faz acreditar que nem tudo está perdido, e a tocha da esperança pode ser bem conduzida pelas novas gerações.
            
Por vezes, a esperança me vem à mente não feito tocha, mas como fogo de monturo. Destroços de trampolins da ambição política, avolumados pelo vai e vem das crises, parecem ter extinto a chama, mas ela continua lá, alimentada pelo ardor constante de quem persiste na resistência, de quem não age como o incendiário que “toca fogo e sai de perto”, apenas pelo prazer de ver o circo pegar fogo, contanto que esteja longe, nem como fogo de palha, inflamado pela empolgação passageira. Para mantê-la acesa, é preciso compreender que direito e justiça não são bondades de governantes, que sobem e descem nas gangorras do poder, mas conquistas, provisórias e gradativas, frutos da organização e da luta cotidiana pela dignidade, vista não como uma coisa abstrata, mas como o acesso aos bens materiais e imateriais necessários para alguém ser realmente gente. Dignidade humana é, antes de tudo, o direito que todo ser humano tem de ser protegido e cuidado desde o ventre materno, nascer como gente, viver como gente, morrer como gente, ter exéquias de gente e partir para eternidade como gente. Para isso, o Direito do Trabalho, que me faz juiz e professor, dá não somente aos meus o pão de cada dia, mas pode ajudar a garantir a muitos o pão da justiça e da dignidade, mantendo ardente a chama da esperança.

Comentários

  1. Uma pessoa iluminada por Deus. Faz, a cada dia de seu labor docente, crescer a vontade por um estudo jurídico que busca a justiça, a igualdade, e a dignidade, nas mentes e nos corações dos alunos. Faço parte deste grupo com muito orgulho. Um orgulho tê-lo como professor.

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