Cartaz




Tinha eu 14 anos. Naquela idade, o estirão precoce das meninas, que me deixava bem menor que elas,  já não me envergonhava tanto. Mas o acanhamento habitual ainda era um estorvo. Em sala de aula eu mal falava. A resposta à pergunta do professor, mesmo que estivesse na ponta da língua, terminava presa na garganta. Ainda bem que a timidez não me impediu de participar da Pastoral de Juventude do Meio Popular, movido pela mística da contestadora e contestada Teologia da Libertação e, no colégio, de uma patrulha de saúde. Saímos nos bairros mais carentes, orientando os moradores sobre saneamento básico. O Brasil sofria com a esquistossomose. Foi quando veio  o concurso de cartazes.
            
Em casa, à tarde, onde e quando liberava destimidez e imaginação fazendo coisas que me davam prazer como estudar e desenhar, a ideia me veio. Resolvi antropomorfizar o mapa do Brasil como um mocinho de filme de cowboy, de arma em punho, mandando chumbo no caramujo, com a frase: ajude o Brasil, combata a esquistossomose. Aquela representação cartográfica armada talvez hoje sofresse patrulhamento do politicamente correto. Se quiseram até restringir a música metralhadora no carnaval. Mas não naqueles anos, ingênuos e marcados por outras violências, em que íamos à matinê de cinema ver Django arrastando o caixão na lama com a metralhadora escondida lá dentro. Quanto ao cartaz, não é que ele terminou dando certo! Primeiro lugar na cidade e no Estado, segundo no Brasil e prêmio em dinheiro, utilizado para ajudar a trocar o cimento queimado do chão da casa por um piso que não precisasse encerar.
             
Não imaginava, porém, que a entrega do prêmio fosse feita por um Ministro de Estado. E eu, mais tímido do que nunca, ao lado dele, dentro daquele carro, de João Pessoa até Guarabira sem dar uma palavra, além dos cumprimentos que a educação doméstica me ensinara. Dias antes, um amigo de meu pai chegou a sugerir o que conversar durante a viagem, talvez alguma reivindicação para a cidade, mas o que eu poderia dizer a um Ministro que merecesse ser ouvido? Aqui, no Clube Recreativo, foi aquela festa. Nós, patrulheiros, fomos condecorados pelo Ministro com medalha no peito, como uma estrela de xerife.
            
Só hoje me dou conta que fazíamos parte de um combate que, ao menos oficialmente, preocupava os dirigentes do país. O combate à esquistossomose, no final dos anos de chumbo, fez parte dos anais de uma Conferência Nacional de Saúde.  Mais que uma campanha, foi criada uma Política de Combate à Esquistossomose (PECE),  doença considerada o maior problema de natureza endêmica no Brasil. A PECE previa instalação de abastecimento de água e esgosto, lavanderias e banheiros públicos e melhorias sanitárias domiciliares: privada higiênica e água não contaminada como condição de sobrevivência digna. Na linha educativa, houve a inclusão do tema no currículo escolar e formação das patrulhas para ações de saúde na comunidade. Dentro de tudo isso, estávamos nós, de medalha no peito, e aquele cartaz com o Brasil feito cowboy.
             
 
Passaram os anos de chumbo,  mas não o descaso com o saneamento básico.  E o cartaz que agora me desperta o interesse é de mais uma campanha da fraternidade ecumênica.  Um rosto de mulher, de cabelos cacheados como eram os de minha filha, olhando para o alto, como quem anseia a conversão dos valores que movem o mundo. Não mais água e terra poluídas, não mais esgostos e lixões a céu aberto, com gente disputando restos de alimento com urubus, que têm lá sua dignidade, mas dignidade de urubu. Olhar de quem, como Amós, quer ver o direito brotar como fonte e a justiça correr qual riacho que não seca. 
             
Alguns números apresentados na campanha nos envergonham. Mais de oitenta por cento dos brasileiros sem água tratada, mais de cem milhões sem rede de esgoto.  Vencemos a ditadura de militares e hoje improvisamos militares como mata-mosquitos. Faremos jogos olímpicos velejando em água poluída, afinal, por dia, despejamos na natureza cinco mil piscinas olímpicas de esgoto sem tratamento. E temos um duro combate contra um vírus que pode condenar inocentes a um destino mais duro ainda.
            
Não é tempo de apontar os outros como culpados pela situação em que nos metemos. Falar sobre herança maldita de quem veio antes é desculpa de inquilino do poder, que não engana nem resolve. Muito menos a soberba de quem faz de si um conceito maior do que convém, mirando-se no espelho d'água como auto-admirador ou salvador da pátria. Para problemas tão  complexos não há salvação que não seja coletiva e complexa. O cartaz resume bem: casa comum, nossa responsabilidade.       





Tudo isso pode parecer mais uma daquelas utopias impossíveis, e o cartaz da campanha, como o do concurso, um tanto ingênuo. Mas a campanha convida a unir igrejas, religiões e pessoas de boa vontade na promoção da justiça e do direito ao saneamento básico.  Ela há de ser tempo favorável para profunda reflexão e radical mudança de vida, pois é movida por um espírito que paira acima de todos, como no início pairava sobre as águas. E o espírito de Deus não é ingênuo.

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