Passadas
as festas, repito a rotina de começo do ano. Subo ao meu cantinho da morada e
me ponho a rasgar papéis, arrumar estantes e gavetas. Mais do que dispor
objetos de forma ordenada – confesso que
não sou tão organizado quanto gostaria de ser e sei que a desordem é apenas uma
ordem que para certos fins não convém –,
para mim essa arrumação é quase um ritual, que me faz revisitar o que
fiz e pensar no que ainda posso fazer. Quantos retalhos de vida retratados ou
anotados em pedaços de papel. E também é preciso arrumar as fotos e gavetas das
mídias digitais, mais fáceis de se perderem no oco do mundo virtual. Sinto-me
como se estivesse a revirar um baú de coisas velhas e novas, como o tesouro do
texto sagrado, nele buscando ajuda e orientação para viver.
Começo
separando o que deve ser guardado, o que pode ser doado e o que merece ser
descartado. A tarefa nem sempre é fácil
como escolher feijão para botar no fogo. Papéis de contas pagas que o tempo não
mais permite serem cobradas, ou com anotações que repasso para arquivos
digitais, para estes não há hesitação da falta de serventia. Entre eles quase sempre encontro anotações
avulsas, e vejo que continuo fazendo justamente o que aconselho a meus alunos
não fazerem – em seu estudo, digo eu, aprendam a se documentar e não se fiem em
pedacinhos de papel. Porém, diante de outros tipos de objetos sempre bate a
dúvida. Se nem tudo que é antigo é relíquia, não é qualquer coisa nova que vale
mais que um objeto antigo, quando este é sinal sensível de um momento
importante da vida, como se fosse um sacramento.
Diante
de uma partitura de meu pai, suspendo a separação dos objetos para entremear a
arrumação com música, tentando transubstanciar as notas do pentagrama em sons
do meu clarinete, que com ele aprendi a tocar. E de um pequeno manuscrito de minha mãe, com os nomes
de minha vó Ambrosina, meu avô Antonio, minha vó Francisca e meu pai João, e
datas de nascimento e morte de cada um, o
coração cheio de saudade e lembrança leva minhas mãos a guardá-lo de volta na gaveta
do que jamais penso em rasgar, por ser parte do meu tesouro pessoal.
Neste
também incluo minha primeira carteira de estudante, do Colégio Estadual, com
assinatura do Diretor Edgardo Júlio. E eu que passei tanto tempo sem saber o o
paradeiro da carteira, nem dar pela sua falta. Mas depois que minha mãe morreu,
descobrimos que ela, sem nada nos dizer, mantinha a carteirinha na gaveta das coisas
de que não quis se desfazer. Fico
imaginando minha mãe a olhar a foto daquele menino tímido de dez anos, sabendo
que, para toda mãe, um filho nunca deixa de ser menino.
Meu
ritual, porém, não para nas recordações do passado. Arrumar também é dar um
rumo, e minha arrumação serve para pensar o rumo de meus projetos e sonhos. Ler
os livros que ainda não li, assistir a filmes que não me dou tempo de vê-los, rever
amigos e parentes que prometo um dia visitar e não visito, viajar sem medo
dentro e fora de mim, fazer o que de bom ainda está por fazer, antes que os
contratempos da vida ou o tempo da morte não mais me permitam.
Quando
eu ainda era o menino tímido da foto, ouvia da Irmã Leal, que tive a felicidade
de rever e abraçar neste fim de ano, que a gente devia agir como se cada dia
fosse o último da nossa vida. E como disse Paulo não só aos Coríntios, mas a
todos nós, mais dia, menos dia, a tenda terrestre em que vivemos se desfaz, e a
morada do “para sempre” não é construída por mãos humanas. Mas enquanto
habitamos a tenda provisória, temos de arrumar não só gavetas a cada ano, mas a
vida, todos os dias.
Não
descartemos, pois, os dons que Deus concede a cada um de nós. Doemos aos outros
o que de melhor podemos dar. Saibamos dar valor ao que realmente tem valor. E
façamos de tudo para não guardar sentimentos ruins no coração. Para arrumar a vida,
nosso coração deve ser relicário de amor, capaz de amar tesouros que não se
desfazem como a tenda terrestre em que vivemos.
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