Ouvindo estrelas





             
Se alguém importante morria, passavam música clássica na rádio. Por isso, quando a empregada de um amigo o encontrava em casa ouvindo Beethoven, perguntava-lhe se alguém tinha morrido. Hoje não há mais esse costume por aqui. Porém, no dia dos mortos, uma emissora toca somente músicas de cantores falecidos, o que é uma bênção. A playlist dos finados é bem melhor que a dos vivos dos outros dias, com tanta música ruim, que não há cristão que aguente.
            
O sucesso dos que já se foram enchem não só os ouvidos de prazer, mas de dinheiro os cofres de alguns. Michel Jackson lidera com folga a lista dos dez famosos mortos que mais arrecadam, da qual fazem parte Elvis Presley, Bob Marley e John Lennon. Segundo a Forbes, só no último ano os rendimentos do criador de Billie Jean  ultrapassaram a cifra dos cem milhões de dólares. E se nenhum centavo dessa fortuna pode chegar aos bolsos desses astros, suponho que, mesmo sem cachê, eles continuam abrilhantando a festa do lado de lá. Se na casa do Pai há muitas moradas, também há de haver muitas playlists, não só de canto gregoriano e música clássica, mas de boas e imortais canções de todos os gêneros.
            
Ninguém sabe exatamente como é a festa no céu.  Leonardo Boff, no documentário Eu Maior, imagina o céu ideal como a humanidade inteira ao redor de uma mesa, um servindo ao outro, e Cristo passando, dando atenção especial aos pobres e humildes. Porém, mesmo sem ter certeza de como ela será, quem, em sã consciência, não fará o possível para entrar nessa festa? Quem não lembra do sapo da fábula, que se enfiou na viola do urubu para entrar no baile celeste? A admiração foi geral, principalmente dos outros bichos da terra incapazes de voo. No caso do animal humano, se a natureza não lhe deu asas, como não deu ao sapo, a sede de infinito plantada em seu coração faz dele um ser alado, capaz de alcançar o paraíso sem precisar de carona na viola de ninguém.
             
Sou daqueles que anseiam um dia participar dessa festa, embora sem pressa desse dia chegar.  E a fé que herdei de meus pais me faz crer que eles habitam uma das muitas moradas por Deus preparadas, ao lado de outros entes amados que já partiram para o além. Quando minha mãe morreu, entre as palavras de consolo que nunca esqueci, ouvi de uma pessoa de muita fé, que quando morre alguém de nossa família, é uma parte do nosso sangue que entra no céu. Mas se isso me conforta o coração, não arranca do meu pensar curioso algumas especulações. Minha mãe, para quem o paraíso na terra era cuidar da família, como estará ela vivendo o paraíso do céu? Ao meu pai, de alma arrebatada pela música e pela história, terá sido dada oportunidade de conhecer de perto grandes vultos da humanidade que tanto admirava? E como será o corpo celestial, dado por Deus a meu filhinho, ferido de morte ainda no ventre da mãe, quando estava prestes a nascer?
            
Sem respostas para essas indagações, às vezes me ponho a olhar as estrelas, pensando não na fábula do sapo, mas na conversa de Mustafa com o filho, Simba, do filme o Rei Leão:
            
 Simba, tudo que você vê faz parte de um delicado equilíbrio. Como rei, você deve entender esse equilíbrio e respeitar todos os animais, desde a formiguinha até os antílopes.
            
   Mas não comemos antílopes?
            
 – Sim, Simba. Mas deixe-me explicar. Quando você morre seu corpo se torna grama que o antílope come. E assim, estamos todos ligados no ciclo da vida. E “deixe-me contar-lhe uma coisa que meu pai me contou. Olhe as estrelas. Os grandes reis do passado olham pra nós lá das estrelas. E sempre que se sentir sozinho, procure lembrar que aqueles reis sempre estarão lá para guiá-lo. E eu também estarei.”
            
Não só os reis, mas as pessoas amadas que nos deixam bons exemplos são como estrelas no céu a nos guiar. E como a pessoa que ama, como aprendi com Bilac, é capaz de ouvir e entender estrelas, penso não ser loucura dar ouvido a elas, da mesma forma que é uma bênção ouvir o canto de muitos mortos.

P.S.: Muitas das questões que trago agora faziam parte de nossas discussões quando fiz Teologia. E costumava conversar sobre elas com uma amiga e colega, a quem aprendi a querer bem.  A ela dedico este texto. D. Detinha Diogo, que também se fez estrela, no alto do céu a nos guiar.

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