Ódio, não. Justa indignação.



         

Mesmo na primavera, por aqui já sentimos o calor da estação mais quente do ano. Para esta época, cai bem o conselho irreverente de Tom Zé: “Não tenha ódio no verão: você vai acabar comendo brasa no tição... Isso arrebenta uma nação!” Arrebenta não só uma nação, mas o coração de quem odeia. E ainda que o Eclesiastes inclua o tempo de odiar entre os momentos oportunos para cada coisa debaixo do céu, ódio não é bom em qualquer estação, diferente da ira, paixão igualmente quente e quase sempre nociva, mas que pode ser boa quando é sinônimo de justa indignação.
            
Além de deixar o rosto vermelho e a venta bufando, a ira aumenta a pressão arterial, causa problemas respiratórios e outros transtornos no corpo e na mente. Por isso, num acesso de fúria, para não fazer besteira, conte não só até dez, mas até quando for preciso, e se preciso for, “cheire a flor, apague a vela”. Como também adverte o Eclesiastes, não se irrite à toa, já que a irritação mora no peito dos insensatos. Paciência, nesse caso, é sempre o melhor remédio. Quem é paciente, diz o livro dos Provérbios, age com prudência, enquanto o impaciente aumenta a própria insensatez.
            
São Tomás de Aquino, com base em Aristóteles, chega a catalogar três tipos ruins de ira. A aguda, de quem se irrita de uma hora pra outra, sem quê nem pra quê. A amarga, da pessoa que, em vez de tirá-la logo da mente, trancafia a ira no coração, e ela acaba entranhada nas vísceras. Por fim, a difícil ou vingativa, de alguém que só sossega quando dá o troco ao desafeto.
            
Mas também existe a ira boa, quando ela reflete a ira de Deus. Esta, segundo a Sagrada Escritura, é sempre justificada, pois se harmoniza com o amor, a sabedoria e a justiça. Em sua pedagogia, Deus não é indiferente aos nossos atos e atitudes. Não fosse assim, não teria se revelado aos seres humanos, nem lhes prescrito mandamentos. Todavia, como diz o livro de Jó, Ele é grande demais para que o possamos conhecer plenamente. E, se por um lado, o Senhor das quatro estações derrama a chuva sobre a multidão humana e com ela alimenta justos e injustos, por outro, seu trovão ferve de ira contra a iniquidade. Mas diferente de nossas iras ruins, a ira santa não nasce de egoísmos, nem de caprichos de verão.
            
No sermão da montanha, quando ensina que a nova justiça supera a antiga, Jesus Cristo também se refere à ira. Diz que está sujeito a julgamento não apenas quem comete homicídio, mas quem trata o próximo com raiva, quem chama o irmão de imbecil ou de louco. Todavia,  o  Evangelho de Marcos fala do olhar irado de Jesus àqueles que o censuravam quando Ele curou um homem no sábado, e o de João mostra o Filho de Deus, de chicote na mão a derrubar mesas, para expulsar vendilhões do templo. Nos dois casos não há que se falar em acesso de cólera, mas de justa indignação contra a dureza do coração de quem colocava o sábado acima do ser humano, e de zelo pela casa do Pai.
            
A diferença entre ódio e justa indignação me traz à mente discussões travadas em redes sociais. De um lado, os que fazem comentários fortes contra a corrupção dos inquilinos do poder e seus apaniguados. Do outro, a defesa destes, com unhas e dentes. E uns acusando os outros, reciprocamente, de destilarem o veneno do ódio pelo mundo virtual.
            
Denunciar com veemência a corrupção, como princípio ético universalizável, e não como indignação seletiva, é combater o bom combate. Nesse caso, o mal é ficar calado ou indiferente. Como dizia São João Crisóstomo, quem não se indigna quando tem motivo para fazê-lo, peca.  A falta de indignação ante o mal “semeia vícios, alimenta a negligência e facilita que não só os maus, como também os bons, pratiquem o mal.”
            
A justa indignação é diferente do discurso do ódio, embebido no fel da intolerância, na miopia ideológica ou na mesquinhez de interesses pessoais, discurso gerador de discriminação, ódio que faz você comer brasa no tição e que arrebenta uma nação. Ela deseja destruir o mal e não a pessoa que o pratica. Santo Agostinho já dizia que devemos detestar o erro, mas amar o que erra. E ainda que a razão esteja comigo e me seja lícito pedir a justa punição de quem errou, ao meu coração não posso dar o direito ao ódio, que me levará ao abismo infernal do desamor. Como lembra o Padre Francisco Faus, ninguém vai para o céu por ter tido razão. Mas irá por ter amado, corrigido o outro do modo certo, ajudado quem errou a se salvar.

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