Muitas palavras do Evangelho – digo eu, pafraseando Kant – me enchem o coração não só de admiração e respeito, mas de inquietação, quanto mais meu pensamento nelas se detém. É o que acontece quando paro para refletir sobre a seguinte advertência de Jesus: Se alguém quiser me seguir, renuncie a si mesmo, tome sua cruz e siga-me. Quem quiser salvar a sua vida, vai perdê-la; mas quem perder a sua vida por minha causa, vai salvá-la.
Renúncia, nesse caso, não é anulação de si mesmo,
mas buscar vencer o egoísmo; é não se achar senhor absoluto da própria vida,
mas abrir-se ao verdadeiro autoconhecimento e à felicidade que só Deus pode nos
dar. Por sua vez, tomar a cruz e doar a vida pelos outros implica um amor e uma
ética exigentes, na consciência de que “uma vida que se esgota em conservá-la
não tem sentido”. Pois quando o assunto é salvação e sentido da vida – coisas
que se imbricam – é preciso perder para ganhar.
Perder a vida para salvá-la não é só derramar o
próprio sangue num martírio. A mãe que doa o melhor de seus dias a seus filhos,
o educador que passa a vida formando pessoas, o médico fiel aos preceitos de
honestidade, caridade e ciência, proclamados
em seu juramento, entre outros, são
exemplos de como se perde a vida para salvá-la. Para dar sentido à vida, é
preciso ser como uma vela, que se consome para levar luz ao mundo.
Falar em renúncia de si mesmo, porém, para muitos
parece coisa de outro mundo, como observa Gilles Lipovetsky, quando fala da
sociedade pós-moralista. Vivemos uma época em que a retórica do sacrifício não é
levada a sério, em que se incensam os direitos individuais no altar do
bem-estar pessoal, enquanto dever e responsabilidade são exorcizados como se
fossem demônios. Nesse contexto, o sacrifício pessoal perde a razão de ser e,
no dizer daquele autor, “as lições de moral são encobertas pelo fulgor de uma
vida melhor, do irradiante sol das férias de verão, do banal passatempo das
mídias.”
É possível enxergar traços dessa sociedade em
pequenos exemplos do dia a dia, como a falta de responsabilidade de certos alunos.
Mesmo chamados a ir para a escola no passinho e pelo funk da TV, alguns vão
para a sala de aula somente para não perder algum benefício social, mas não dão
a mínima para o estudo, muito menos para o professor, que tem de aprová-los sem
qualquer cobrança, num faz de conta pedagógigo de uma pátria demagogicamente
educadora. E esse tipo de comportamento não é exclusivo de alunos pobres. Em
muitos colégios pagos reina o descompromisso de alguns, que nem merecem ser
chamados estudantes. Mas em casa os pais nada exigem dos filhos, e se alguém
ousa chamá-los a atenção, tentando lhe passar algum ensinamento moral, é tachado
de chato, de errado, numa absurda inversão de valores.
A falta de seriedade no cumprimento dos deveres
também se dá no exercício profissional, bem como no trato da coisa pública pelas
autoridades, a quem caberia dar o bom exemplo. E até na vivência religiosa se
percebe a disseminação de contravalores de quem prefere criar uma religião para
próprio consumo e satisfação. Para que se falar em renúncia a si mesmo, quando é
mais cômodo substituir a ética e o amor exigentes pela religião do espetáculo?
Para que pregar o sacrifício da cruz se é mais fácil viver uma prática
religiosa de bem-estar individual e exibicionismo festivo no “banal passatempo
das mídias sociais”?
Diante de tudo isso, ponho-me inquieto quando me reflito
no espelho do Evangelho da renúncia e da cruz. E peço a Deus que nos ajude a
abrir os olhos e o coração, para salvar nossas vidas da exaltação do ego e das
vaidades, para nos livrar do reino da ética edulcorada e indolor da sociedade
pós-moralista.
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