José e as vacas magras.


No conhecido sonho relatado no Gênesis, o faraó se vê às margens do Nilo. Do rio saem sete vacas bonitas e bem cevadas, que vão pastar nos juncos. Depois surgem outras sete, feias e magras, que se põem ao lado das primeiras. De repente, as vacas magras devoram as gordas. Perturbado, o rei convoca os magos e sábios para tentar decifrar o sonho, mas nenhum deles consegue desvendá-lo. Então o copeiro-mor fala ao soberano de um jovem hebreu, que estava na prisão, e que tinha interpretado um sonho do copeiro. O jovem era José, nome que quer dizer “Deus multiplica.”
           
O faraó manda chamar José, e pede que este revele o significado daquelas vacas gordas e magras, por ter ouvido falar da fama do jovem hebreu como intérprete de sonhos. José, porém, diz com humildade e sabedoria: “Quem sou eu! É Deus quem dará ao Faraó uma resposta favorável.” E explica que as sete vacas gordas representam sete anos de abundância que haverá no Egito,  seguidos de sete anos de escassez e fome.
           
José também aconselha ao faraó que procure um homem sábio e prudente, e o ponha à frente da administração do Egito, a fim de que o país possa se preparar para enfrentar a crise pressagiada. Seria preciso armazenar víveres nos anos de abundância, que servissem de reserva para o país nos anos das vacas magras.
           
O faraó, então, escolhe José, que se torna o símbolo do grande administrador da maior potência da época, com foco, disciplina e organização, virtudes que hoje se exaltam nos manuais para os bons gestores. Mas acima de tudo, não lhe faltavam ética, compromisso com a verdade, e fé no Deus que multiplica.
           
Nestes dias, em que vivemos o agravamento de uma crise, que nem precisava de um sonho com sete anos de antecedência para sabermos que ia acontecer, tenho pensado na trajetória de José do Egito, no quanto não aprendemos com ele, ruminando em meu pensar sobre a simbologia das vacas.
           
Ano passado, por esta época, dava para perceber que nenhum rebanho de vacas, por mais bem cevadas que fossem, suportaria os desmandos de ocupantes do palácio e dos amigos do rei, que em campanha eleitoral, de tudo faziam para permanecer no poder. Prometiam mundos e fundos, e um deles disse até que, se preciso fosse, iria ao fundo do mar, tirar do pré-sal o negro óleo para besuntar os tempos de vacas gordas. E ai de quem contrariasse o que diziam. Se alguém porventura falasse em contenção de despesas, era demonizado. Ajuste fiscal para retirar direitos de trabalhadores, isso nunca! Como foi dito na época: nem que a vaca tussa!
           
Perpetrado o estelionato eleitoral, a conversa agora é outra. A festa acabou, o povo sumiu, conta de luz aumentou, a vaca tossiu. Fala-se numa ponte fiscal provisória, que ninguém sabe para onde nos levará.
           
E agora, José? Como fazer bem a travessia dos anos de vacas magras, se não aprendemos a sua lição, de fazer nossas reservas não só de riquezas materiais, mas de tesouros como sensatez, decência e honestidade na administração da coisa pública?
        
Penso que não há sábio no mundo que tenha a chave para abrir as portas da rápida superação da crise, muito menos um adivinho tão poderoso que antecipe quais serão seus desdobramentos. Mas creio, como José, que Deus nos dará uma resposta favorável. Esta, porém, depende do trabalho de cada um de nós. E qualquer que seja a resposta, penso que tem de passar pelos caminhos da ética, do combate à corrupção, da luta pelos direitos e da partilha mais justa dos bens materiais e imateriais, sem esperarmos por pretensos salvadores da pátria.
           
O povo brasileiro é muito mais importante que qualquer governo ou governante. Já fizemos outras travessias de anos de vacas magras. Que esta seja apenas mais uma, a ser enfrentada com  força e altivez. E que não esqueçamos as lições de José, para que os tempos a serem vividos por nossos filhos, e pelos filhos dos nossos filhos, não sejam de vacas magras em bens para uma vida digna de todos, nem feias em desvalores éticos, como os que infectam os atos e atitudes de muitos daqueles que nós ainda permitimos que nos governem.

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