Fui
chamado para, no dia dos namorados, falar num congresso jurídico, sobre a
violência contra a mulher nas relações de trabalho. O clima junino me atiçou a
lembrança da letra de um xote, que logo transformei em mote da minha fala. De
autoria de Durval Vieira, a música “Tem pouca diferença” foi lançada em
1981, numa das faixas do último LP de Jackson do Pandeiro. Três anos mais
tarde, em homenagem a este, falecido em 1982,
foi regravada por Gal Costa, com participação de Luiz Gonzaga, em outro
LP memorável, o Gal Profana, aquele da capa com a imagem da cantora de batom em
riste e boca exuberantemente vermelha, aquele da “chuva de prata que cai sem
parar”, tão apropriada para molhar de luz o beijo dos enamorados, num dia como
aquele. E enquanto as palavras saíam da minha boca, a vitrola da mente tocava o
refrão do xote: “Que diferença da mulher o homem tem, espera aí que eu vou
dizer, meu bem...”
Quis
eu, porém, destacar não as dessemelhanças epidérmicas do estribilho, que fala
do cabelo no peito e do queixo cabeludo do homem – que a mulher não tem –, mas a parecença entre
os seres humanos, independente de sexo ou gênero, ilustrada na estrofe que diz:
“Mulher tem
duas pernas, tem dois braços, duas coxas,
um nariz e uma boca e
tem muita inteligência.
O bicho homem, também
tem do mesmo jeito,
Se for reparar
direito, tem pouquinha diferença.”
Mas
reparando bem, embora pouquinha, a diferença tem sido pretexto para injusta
discriminação da mulher nas relações de trabalho. Nossa cultura machista, como destaquei na
oportunidade, reserva à mulher uma parte desgastantemente maior das tarefas
caseiras, assumidas pelas próprias donas de casa ou, quando estas terceirizam a
lida, pelas mãos alheias e serviçais das domésticas. E quando a atividade é
fora do lar, ainda é comum a mulher receber salário menor para trabalho de
igual valor, apesar da proibição legal, além de ser vítima de assédio moral e
sexual no trabalho.
A referência a discriminação e
assédio acionou de novo a agulha da vitrola de minhas recordações. Desta feita
para tocar mentalmente a canção “Anúncio de jornal”, que colocou a
cantora argentina Julia Graciela no topo das paradas de sucesso, com o
seu compacto simples lançado em 1980, e cujo refrão assim diz: “Precisa-se de moça,
boa aparência pra secretária. Tem que ser muito bonita, descontraída e
educada.”
Um anúncio desse seria hoje não apenas um arranhão
na lataria do politicamente correto, mas uma heresia jurídica. Se a Lei Maior
consagra como um dos objetivos da República promover o bem de todos, sem
preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de
discriminação, e proibe critérios discriminatórios para admissão de empregados,
a lei trabalhista veda publicar ou fazer publicar anúncio de emprego com
referência a discriminação injustificada.
Mas a pobre moça da música, com a
mentalidade própria àqueles anos, nem tinha como pensar com os conceitos de
hoje. Além do mais, era ainda menina, quando leu o tal anúncio. Adornou-se,
então, com seu melhor vestido e foi ter com o responsável pela publicação,
afinal, nos seus “sonhos coloridos, precisava trabalhar.” Em pouco tempo, ela
estava não só empregada, mas apaixonada pelo empregador. Porém, numa segunda
feira de outubro, o patrão lhe pediu para terminar uma carta, “depois das
seis”. Mas que carta, que nada! A moça perdeu não só o tempo, mas a inocência
por amor ao chefe, e ele sequer teve a
decência de justificar o fim da relação pessoalmente. Mandou apenas entregar à
moça um envelope fechado, para “pagar”
os sonhos seus.
Sonhos
não se pagam com dinheiro. Também não bastam leis para evitar a violência
contra a mulher nas relações de trabalho. O Direito do Trabalho, por um lado,
faz pouquinha diferença de sexo e gênero, protegendo mais a maternidade que o
trabalho da mulher, a ponto da licença-maternidade ser concedida até para o
bicho homem, de cabelo no peito e de queixo cabeludo, como o do xote. Em muitos
casos, porém, não tem sido bastante, como pretende o Direito Internacional,
para prevenir, punir e erradicar atos ou condutas baseadas no gênero, que
causem morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico a moças como a
da outra canção, embora todo mundo saiba que violência de gênero não é “coisa
de mulher”, mas uma infame profanação da sacralidade humana.
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