Há
vinte e cinco anos, passei num concurso para servidor público federal. Nos
quadros do tribunal, naquela época, tinha vaga até para agente de limpeza. E
era comum alguém com nível superior concorrer a esse cargo. Se o salário era
bom, qual o problema de uma pessoa, com anel no dedo, trabalhar varrendo o
chão? Hoje a situação é diferente. A lei e o direito admitem que a moça da
limpeza não seja tão bem remunerada quanto a concursada de outrora, mesmo
usando “capinha”, para servir cafezinho a magistrado de toga.
Lembro
ainda que profissionais da Fundação de Saúde de nossa cidade, pelo que ouvia
falar desde os tempos de menino, além de ganharem bem, faziam parte de um
quadro de carreira, que lhes dava segurança e permitia maior dedicação ao
serviço público. Mas o direito e a necessidade dos novos tempos toleram a
contratação precária de pessoas para trabalhar em hospitais públicos, e até os guardiães da Lei Maior dizem que
esta permite que “entidades privadas conhecidas como organizações sociais
possam prestar serviços públicos nas áreas de ensino, pesquisa científica,
desenvolvimento tecnológico, meio ambiente, cultura e saúde.”
É
tanta a tolerância com algumas formas de precarização e terceirização, que
terminamos por achar normal a importação de médicos de Cuba, cuja forma de
contratação, por mais que seja legal, assemelha-se à intermediação ilícita de
mão-de-obra. Em algumas atividades econômicas, o intermediador ganha com a
exploração de trabalho alheio, posto à “venda” para o tomador de serviço. É o
arregimentador de mão-de-obra, apelidado de “gato”. Na importação dos médicos
da ilha, ainda que a importância do Mais Médicos possa me convencer do
contrário, não tenho como não enxergar nessa negociação – na qual profissionais
recebem menos da metade de outros com idêntica função, trabalho de igual valor
e prestado ao mesmo tomador de serviço – uma tolerância legal, quem sabe pela
afinidade ideológica entre os comandantes daqui e os de lá, à atuação de um
“gato”, mesmo que seja um “gato estatal cubano.”
Por
essas e outras, penso ser importante dirigir o olhar para além do embate
maniqueísta, entre os que louvam e os que amaldiçoam as propostas de
regulamentar, pela lei, a terceirização trabalhista. Tenho posição contrária à
ampliação desmesurada da terceirização, pois sei que, no verso e na prática,
ela rima com precarização. Mas aceitar a terceirização de trabalhadores para
atividade-meio, sabendo que essa terceirização é sinônimo de precarização, e
livrar desta apenas os trabalhadores da atividade-fim de uma empresa, não deixa
de ser uma confissão de culpa. É o mesmo que aceitar, sem peso na consciência,
que a moça que me serve o cafezinho possa ser submetida à terceirização que
precariza, e achar que a toga que visto pode ser um álibi para terceirização de
meu remorso, ou ilusão de que sou ungido por uma justiça que me justifica.
A
precarização do trabalho habita e habitará entre nós, com ou sem ajuda de lei
da terceirização. Quem sobrevive com o salário mínimo vigente, ainda longe do
que exige a Constituição, seja ou não terceirizado, não está entre os muitos
habitantes do mundo do trabalho precarizado? Ou é melhor acreditar em números
enganadores, que tentam convencer que basta ganhar um salário mínimo, para
alguém ter saído da pobreza, e que um trabalhador que ganha o equivalente ao
salário mínimo que seria o constitucional, faz parte da “alta classe média”,
tendo parte de sua renda devorada pelas garras do Leão?
Lutar
contra a permissão legal para tornar mais larga a porta da terceirização que
precariza é, sem dúvida, combater um bom combate. Mas é importante não perder
de vista outras lutas maiores: contra a invisibilidade social dos trabalhadores
precarizados, a banalização da indiferença diante do sofrimento do outro e toda
forma de exploração do trabalho que implique precarização da vida. E que cada
um não terceirize sua responsabilidade, para que não tenha de precarizar sua
esperança.
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