O Brasil, como dizia Paulo Rigger, personagem
do primeiro romance de Jorge Amado, parece ser mesmo o país do carnaval. Por
alguns dias, damos uma trégua nas notícias da seca – velha conhecida dos
nordestinos e agora destaque da grande mídia carioca e paulista, por castigar
os irmãos de lá --; deixamos de lado as desilusões do engodo eleitoral,
baixamos o índice de indignação com a sangria dos cofres da Petrobrás, tudo
para cairmos na folia.
Por
um lado, não se pode negar o valor do carnaval como raro momento de nossa gente
exultar de alegria, salpicando um pouco de sonho na dura realidade da vida,
como dizia dom Hélder Câmara. Mas também existe a euforia manipulada de quem se
utiliza do carnaval como ópio das multidões.
Nestes dias, entre aquelas matérias da TV em
que repórteres estampam um sorriso carnavalesco forçado – alguns fazem os
músicos acordarem bem cedinho, para darem uma “palhinha” de poucos instantes no
primeiro jornal da manhã – vi uma reportagem apresentada como gafe, mas que
achei sensacional. Câmera ligada, o repórter faz cara de folião. Antes de
passar o microfone para um senhor idoso, no meio da folia, o profissional da TV
diz: aqui todo mundo está feliz. Mas o senhor retruca: – eu mesmo, não!
Na resposta daquele ancião – até certo ponto
carnavalizada, pois se carnaval é o mundo às avessas, é possível alguém brincar
o carnaval mesmo sabendo que nem todo mundo está feliz –, talvez se possa
encontrar o “grão de luz” de um “griô”, mestre das sabenças da vida, da
memória viva e afetiva da tradição oral.
Por falar em griô e felicidade, o enredo
campeão do carnaval carioca foi “um griô conta a história: um olhar sobre a
África e o despontar da Guiné Equatorial. Caminhemos sobre a trilha de nossa
felicidade.”
Na
explicação do enredo, afirma-se que para compreender o Brasil é necessário
conhecer nossas raízes africanas e que, ao revisitarmos o sofrido continente
africano, a proposta é mostrar que é possível alimentar a esperança de um povo
massacrado, cansado e desiludido, e construir uma nova África, com base no
progresso gerado pelo petróleo, o “ouro negro”, e nos ideais de paz e justiça.
Destaca-se, ainda, que nada é mais degradante que a ausência da liberdade e
nada mais libertador que a força de um povo. Por isso a letra do samba exalta o
grito pela liberdade: “negro canta, negro clama liberdade! Sinfonia das marés,
saudade!”
Tudo
isso seria muito bonito – como foi o desfile da escola de samba – se não
camuflasse o fato de que, a exemplo da resposta do ancião ao repórter– nem
aqui, nem na Guiné, todo mundo está feliz. Na Guiné, menos da metade da
população tem acesso à água potável, vinte por cento das crianças morrem antes
dos cinco anos de idade, o tráfico de pessoas é significativo, violações dos
direitos humanos são constantes, enquanto seus governantes esbanjam mundo
afora, com o dinheiro do petróleo que no mar aflora. E quando perguntam aos
governantes de lá quem patrocionou o luxuoso desfile da escola campeã, a
conversa é parecida com a dos corruptos daqui: – não fui eu; não sei de nada;
foi dinheiro de empreiteira. Ora, dinheiro que vem do ouro negro, da Guiné ou
do Brasil, não precisa ser dinheiro sujo, que faz vergonha dizer de onde vem.
Não se pode compreender a alma brasileira desprezando as
raízes africanas. Mas a chama da igualdade de um povo não se alimenta quando o
ouro negro abastece a opulência de poucos em detrimento da miséria de muitos.
Como a criança pode levantar a cabeça e ver que no mar que trouxe a dor a
riqueza aflora, sem ter acesso a água, saúde e educação? Não chora quem beija a
flor da justiça, sem a qual não se constrói o canteiro da paz nem a trilha da
felicidade. E para isso não basta um belo desfile de carnaval.
Comentários
Postar um comentário