Fazia
tempo que não faltava energia elétrica em nossa rua. Esta semana aconteceu. A
escuridão e o calor do interior da casa nos fizeram sair para a varanda e
contemplar o céu, algo que eu também não fazia há bastante tempo. Tantas
estrelas a cintilar na imensidão do firmamento eram mais que um espetáculo
cósmico de rara beleza. Eram um convite a refletir sobre mistérios e milagres.
Pensei
no que diz Carl Sagan, no livro bilhões e
bilhões, e me pus a refletir: se vivemos num universo cuja vastidão vai
além do nosso entendimento; se este universo pode ser apenas um entre muitos,
com diferentes leis da natureza e formas de matéria, quem sou eu para sondar os
seus segredos? Um contador de grãos de areia, como Arquimedes, a procurar um
número tão grande que dê conta de tudo quanto existe? Ou um ínfimo grão de
areia pensante, eterno fascinado pela imensidão dos universos?
Se
o olhar da ciência para o cosmos me instiga, a intuição do mito me seduz e a
mistagogia da religião me desafia, quando em pensamento mergulho nas
profundezas dos universos ou viajo em seus espaços siderais, celestiais. Como
calcular grãos de areia, narrar cosmogonias, compreender a Revelação de Deus?
Ciência, religião e mito não me libertam dos mistérios e milagres dos céus, da
terra, da vida.
Mito
não é antônimo de verdade, como dizem por aí. Mas, como ensina Cassirer, é
verdade intuitiva. Mito é linguagem simbólica, conscientemente insuficiente e,
justamente por isso, mais próxima das cercanias dos mistérios. Estes, em
diversas religiões, apresentam-se como rituais de renovação do mito, cultos da
natureza que integram o ser humano no perene ciclo da vida. E mesmo religiões
bem elaboradas, como as cristãs, não deixam de ter traços do mito. Pois não há
Teologia deste mundo que decifre plenamente o Absoluto. Este, ainda que em
parte se revele, não sendo absolutamente inexplicável, decerto é absolutamente
inexaurível.
Nas
moradas do inexplicável é que habitam os milagres, fenômenos da natureza que
ultrapassam a explicação científica. Assim, a noção moderna de milagre depende
da ideia de lei da natureza, como uma constante da ordem natural, concepção que
não presidia o pensamento dos povos do antigo Oriente Médio. Para eles os
fenômenos naturais eram efeitos perceptíveis da ação divina, não sendo à-toa
que, no Antigo Testamento, a natureza seja cenário da constante intervenção de
Iahweh. E no Novo Testamento, mesmo escrito após o surgimento da especulação
filosófica e científica dos gregos, a ideia da ação divina sobre a natureza e
na história humana é reelaborada sobre a tradição da Antiga Aliança. Os
milagres de Jesus são obras de poder, sinais da intervenção divina. Por eles o
Deus Filho revela ao mundo o poder e a vontade Deus, sendo evidências de que
Jesus pode nos dar tudo o que promete, como doação total do amor sem limites. O
milagre, portanto, é sempre sinal e expressão da força salvífica do Amor de
Deus.
Por levá-los tão a sério, por vezes me angustia a
banalização “pós-moderna” de mistérios e milagres. Igrejas, a começar pela
minha, transformando mistagogia em espetáculo para entretenimento do ego.
Cultos com dia e hora marcados para produção de “milagres” a granel, correntes
para arranjar emprego e marido, missa disso, missa daquilo, símbolos sagrados
transformados em amuletos ou peças de decoração. Vejo a hora venderem imagem de
santo como quem vende uma Barbie que fala.
Até a
música gospel não consegue se livrar das modas do consumismo e das garras do
mercado. Uma das mais tocadas ultimamente – nas playlists das campeãs, ao lado do refrão brega-gospel: “nada, nada, nada”, da impagável “sofrência”: “porque homem não chora”, e
da filosófico-etílica: “gelo na balada” (e olha que eu gosto de brega) --, fala
de uma coincidência numa promoção de supermercado como sendo o milagre do Caixa
7.
Claro
que em tudo posso ver a Misericórdia divina. O ar que respiro, a água que mata
minha sede e o pão que sacia minha fome são dons de Deus. Mas se meu time for
campeão – o que é muito difícil – ou não cair para a segunda divisão com a
ajuda do tapetão – o que já não é tanto assim – ou se algum dia eu ganhar na
mega-sena – evento improbabilíssimo --, não acho honesto sair cantando por aí
que se trata de um milagre.
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