O cálice de ouro



Meu pai contava uma história sobre um homem pobre, muito pobre mesmo. Já idoso, vivia com sua esposa numa casinha humilde. Os filhos, morando longe, quase não os visitavam. Mas aquele ancião, apesar da pobreza extrema, guardava com orgulho e cuidado, um objeto muito especial. Um cálice de ouro, lembrança palpável dos tempos que tinha sido rico. Se alguém batia à porta daquele casebre, o velhinho contava sua história e mostrava à pessoa aquele objeto quase sagrado. Por que, então, ele não vendia o cálice, que não servia para nada, e com o dinheiro da venda, comprava algo necessário? É que o cálice não era um simples objeto, mas um símbolo.

Na economia do valor simbólico, o essencial vai além do indispensável. Jean Baudrillard, tratando da sociedade de consumo, lembra que não existe grupo humano que não gaste além do necessário. É na fruição do supérfluo que as pessoas se sentem não só existir, mas viver. Nessa perspectiva, a ideia de utilidade, do racionalismo economicista, cede espaço para uma lógica social em que o supérfluo, longe de ser  resíduo irracional, tem função muito importante, e a aparente inutilidade ritual do “gasto por nada” é origem da produção de valores que não são os racionalmente econômicos, mas os da produção de sentido para a vida.

Para ilustrar sua tese, Baudrillard traz à cena a fala do Rei Lear de Shakespeare: “não discutam a necessidade. O mais pobre dos mendigos possui algo de supérfluo na mais miserável coisa. Reduzam a natureza às necessidades da natureza e o homem ficará reduzido ao animal: sua vida deixará de ter valor. Compreendes por acaso que necessitamos de um pequeno excesso para existir?”

Veja, por exemplo, o consumo no Natal. Gastamos com roupas, comidas e presentes, que vão além do que realmente precisamos comprar e consumir. Às vezes o exagero é tanto que fazemos como diz o mote do poeta e advogado campinense José Araújo: “comprou o que não precisa pra pagar com o que não tem.” Mas será que a festa teria graça se não fossem os pequenos excessos que não nos deixam reduzir à condição de animal, que não transcende às necessidades da natureza?

Temos carência de água para consumo e para gerar energia elétrica. As casas, as praças, os shoppings e as igrejas, porém, estão enfeitadas e iluminadas, consumindo muito mais do que o necessário. Mas o Natal sem luzes e enfeites teria o mesmo sentido? Até um bom presépio, invenção do pobre dos pobres, São Francisco, não custa pouco dinheiro numa loja de artigos religiosos.

O mal não está nesses pequenos excessos, nascidos da necessidade humana de valores simbólicos para sentir-se viver, e não só existir. O perfume caro derramado na unção em Betânia é um bom exemplo disso. Custava trezentos denários, o equivalente, segundo dizem, ao salário de trezentos dias de um operário. Mas derramá-lo na cabeça de Jesus não foi gesto de desperdício da mulher que rompeu o frasco de alabastro, mas símbolo do dom total do seu amor, em contraponto à hipócrita preocupação de Judas com os pobres, logo ele, que só pensava em dinheiro, e disfarçava a linguagem do interesse como se fosse caridade. O mal é quando o símbolo não mais simboliza, e deixa de ser essência para ser aparência, e um cálice de ouro transforma-se num bezerro de ouro idolatrado. 

Que as luzes e enfeites, presentes e presépios sejam símbolos verdadeiros do Natal verdadeiro. Que cada um tenha consciência de que o outro é seu irmão, e de que todos, especialmente os mais pobres, têm fome de pão e de amor não apenas no Natal, pois só o amor, este sim, é o que há de verdadeiramente essencial em nossa vida.

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