No perau profundo





Gosto da política, não nego. Mas dói na alma assistir a certos debates. Os candidatos, como os sapos de Manuel Bandeira, parecem sair da penumbra para a luz que os deslumbra, enfunando os papos:

            -- Teu passado foi sujo!
            -- Não foi! – Foi! – Não foi!
            -- Mas teu presente é pior!
            -- Não é! – É! – Não é!
            -- Tua irmã é corrupta!
            -- Mas teu irmão também é!
            -- Não é! – É! Não é!

Chego a me sentir como o sapo-cururu do poema. Sem glória, sem fé, a soluçar na beira do rio. E como quem já perdeu as ilusões, sou tentado a fazer versos como quem chora de desencanto, feito os de outro poema do mestre Bandeira.

Por outro lado, fico a pensar se devo me acabrunhar com esse jeito torto de se fazer política no planalto, na planície ou no perau profundo.

No meu matutar solitário, folheio o Documento de Aparecida. Nele, os bispos da América Latina assinalam como fator negativo, em grande parte do continente, o aumento da corrupção na sociedade e no Estado. Concluem que esse fato aumenta a desconfiança do povo, diminui a fé nas instituições, gera o desdém pela legalidade, fomenta o desencanto com a política. Também os preocupa o avanço de formas de regressão autoritária por via democrática, que engendram regimes de feição neopopulista.

Mas ao dirigir o olhar para a realidade política, o documento enxerga não apenas sombras e penumbras, mas vislumbra luzes e sinais de esperança. Por isso propõe a participação da sociedade para reorientação e reabilitação ética da política. Para tanto, aponta a importância dos espaços de participação da sociedade civil para a vigência da democracia, para uma economia solidária e um desenvolvimento integral e sustentável. E se o desenvolvimento é o novo nome da paz, como há muito dizia o Papa Paulo VI, não se pode esquecer, como também há muito nos ensina a Populorum Progressio, que o verdadeiro desenvolvimento é a passagem, para todos e cada um, das condições de vida menos humanas a condições de vida mais humanas.

Nessa linha de raciocínio, sou instado a crer que apesar das mentiras maquiadas por marqueteiros políticos – nenhum candidato é metade daquilo que se mostra na propaganda, nem poderá fazer metade daquilo que promete na campanha; não há, na política, salvadores da pátria, pai ou mãe dos pobres --, o eleitor tenha suficiente discernimento para fazer, entre as opções possíveis, sua escolha consciente e livre. Livre do medo, livre do patrulhamento ideológico, livre da manipulação.

Espero, ainda, que desarmados os palanques, seja quem for o eleito, a maioria da população passe a entender que para construir uma democracia não basta votar num candidato. É preciso ocupar os espaços de participação da sociedade civil, acompanhar a atuação dos representantes do povo, não achar que corrupção é algo normal, exigir punição de quem rouba o que é nosso, tirar o poder de quem não é digno de exercê-lo.

Quem sabe assim a gente possa reabilitar a ética na política, diminuir o desencanto com ela. Talvez com isso, no cenário da política, o povo deixe de ser o sapo-cururu a soluçar no perau profundo. Só assim, mais do que um sapo que vira príncipe, como ocorre no mundo dos encantos e desencantos, o povo será soberano do seu próprio destino.

Comentários