Num
simpósio realizado em João Pessoa-PB, fiz uma apresentação sobre a Lei do
motorista profissional (LEI 12.619/2012), objeto de um proveitoso
debate. Na oportunidade, destacamos alguns pontos.
A LEI CRIA UMA PROFISSÃO DIFERENCIADA?
À
primeira vista, dá a entender que sim, ao dizer que dispõe sobre o exercício da
profissão de motorista, de acordo com legislação específica. Mas depois do que
foi possível aprovar do projeto original, e com o resultado dos vetos, resta
basicamente a regulação da duração do trabalho do motorista, com alterações pontuais
na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e no Código Brasileiro de Trânsito
(CBT).
QUEM É CONSIDERADO MOTORISTA
PROFISSIONAL?
Pelo
texto em vigor, é o integrante da categoria de motorista profissional de
veículos automotores cuja condição exija formação profissional, embora não
detalhe em que consiste tal formação, e seja empregado de empresa de transporte
rodoviário de passageiros ou de cargas, o que limita a abrangência da
legislação ao motorista empregado.
QUAIS OS PRINCIPAIS DIREITOS DA
CATEGORIA?
O
artigo segundo trata dos direitos dos motoristas. Parte do texto parece puro
ornamento retórico, beirando, com licença da palavra, à demagogia legal. Vejam
só: a lei coloca como direitos dos motoristas profissionais o atendimento
profilático, terapêutico e reabilitador, por meio do SUS, em relação às
enfermidades que mais os acometam, e proteção do Estado contra ações criminosas
no exercício da profissão. Direito que é direito deveria ser exigível. Esses
daí podem ser exigidos?
Há,
porém, outra parte mais fácil de sair do papel. Diz o texto normativo que
também é direito da categoria jornada de trabalho e tempo de direção
controlados de maneira fidedigna pelo empregador, que pode valer-se de diário
de bordo, papeleta, ficha de trabalho externo ou de outros meios eletrônicos
idôneos, comprovando o que eu já adotava em algumas decisões, mesmo antes da
lei: a atividade de motorista, mesmo externa, pode ser controlada, dando
direito, se for o caso, a pagamento de horas extras.
Também
lhes é garantido seguro obrigatório, custeado pelo empregador, em valor de pelo
menos dez vezes o piso salarial da categoria.
E OS DEVERES?
Os
deveres constam do Art. 3º da Lei, que alterou a CLT (Art. 235-B), onde constam
como principais deveres: estar atento às condições de segurança do veículo;
conduzi-lo com perícia, prudência, zelo e observância aos princípios de direção
defensiva; respeitar a legislação de trânsito, especialmente as relacionadas ao
tempo de direção e descanso, e colocar-se à disposição dos órgãos
fiscalizadores.
Tais
deveres, a rigor, aplicam-se aos motoristas em geral. Mas se a lei especifica
como deveres legais do motorista profissional, entendo que se este se recusar,
por exemplo, a dirigir veículo com pneu careca, ou depois de uma jornada
estafante, jamais pode ser tido como insubordinado, pois está cumprindo seu
dever legal.
A
lei ainda fala em deveres específicos, como zelar pela carga e pelo veículo, e
submeter-se a teste e programa de controle de uso de droga e de bebida
alcoólica, instituído pelo empregador, sob pena de infração disciplinar.
COMO FICOU, ENTÃO, A JORNADA DE TRABALHO
DO MOTORISTA PROFISSIONAL?
Nesse
ponto estão as grandes novidades e também as maiores polêmicas.
A
duração do trabalho, que agora consta do Art. 235-C da CLT, deve ser, em tese,
a de todo trabalhador, de acordo com a Constituição, ou seja, máximo de oito
horas diárias e quarenta e quatro semanais.
A
lei admite, porém, que convenção e acordo coletivo possam prever jornada
especial de 12 x 36 horas, em razão da especificidade do transporte, de
sazonalidade ou de característica que o justifique (Art. 235-F da CLT)
As
horas extras, a exemplo dos demais trabalhadores, pode ser no máximo de duas
após a jornada normal. O intervalo mínimo para refeição, como o de todo
trabalhador, de no mínimo de uma hora, e o intervalo entre uma jornada e outra,
de onze horas.
Quanto
ao repouso semanal, a lei fala em 35 horas. Mas na verdade, a situação não é
diferente dos demais empregados. Pois todo trabalhador tem direito a descanso
semanal de 24 horas. Só que dessas 24 não podem ser descontadas as 11 horas
entre a última hora trabalhada em uma jornada e a primeira da seguinte, o que
totaliza 35 horas.
No
caso de viagens com duração superior a uma semana, a lei prevê descanso semanal
de 36 horas (Art. 235-E da CLT), com gozo no retorno do motorista à base
(matriz ou filial) ou em seu domicílio, salvo se a empresa oferecer condições
adequadas para o gozo do descanso durante a viagem.
SE A DURAÇÃO DO TRABALHO É SEMELHANTE À
DOS DEMAIS TRABALHADORES, QUAIS SÃO MESMO AS NOVIDADES?
As
novidades são basicamente as noções de trabalho efetivo ou tempo de direção, tempo de espera (só para transporte de
cargas) e tempo de reserva.
O
texto diz que trabalho efetivo é o
tempo à disposição do empregador, excluídos intervalos para refeição, descanso
e espera.
Quanto
à exclusão dos intervalos para refeição e descanso, não há muita novidade. O
que difere é excluir do trabalho efetivo
o chamado tempo de espera.
O QUE É TEMPO DE ESPERA?
Segundo
o texto, tempo de espera são as horas que excedem a jornada normal de motorista
de transporte de cargas que fica aguardando para carregar ou descarregar do
veículo ou para fiscalização da mercadoria. Tais horas não são computadas como
horas extras, mas “indenizadas” com base no salário-hora normal, com acréscimo
de 30% (trinta por cento).
Essa
inovação, embora constante da lei em vigor, parece ir de encontro ao que prevê o
Art. 4º a CLT, que considera como de serviço
efetivo o período em que o empregado estiver à disposição do empregador,
aguardando ou executando ordens, salvo
disposição especial expressamente consignada.
Se
para todos os trabalhadores o tempo que excede a jornada normal é considerado
como hora extra e, se habitual, integra a remuneração para todos os efeitos,
sendo verba salarial e não indenizatória, esse dispositivo seria
inconstitucional, por ferir a isonomia, ou estaria amparado pela ressalva do
Art. 4º da CLT? Eis a questão.
E TEMPO DE RESERVA?
O
tempo de reserva é geralmente o que pode ocorrer nas viagens de longa distância, aquelas em que o motorista fica fora da
base da empresa e de sua residência por mais de 24 horas (Art.235-D da CLT),
quando a empresa utiliza mais de um motorista, aplicando-se tanto ao transporte
de carga quanto ao de passageiros.
Nesse
caso, quando motoristas trabalham em dupla no mesmo veículo, o tempo que excede
a jornada normal de trabalho em que o motorista estiver em repouso no veículo
em movimento é considerado tempo de
reserva, remunerado na razão de 30%
(trinta por cento) da hora normal. Vejam que a lei não fala em acréscimo de
trinta por cento sobre a hora normal e sim remuneração na base de 30% da hora
normal.
Vale
lembrar que, nessas viagens longas, se uma parte do repouso pode ser gozada com
o veículo em movimento, a lei exige que pelo menos seis horas consecutivas do
repouso sejam em alojamento externo ou, quando o veículo tiver cabine leito,
com o veículo estacionado.
A LEI 12.619 SE APLICA SOMENTE AOS
MOTORISTAS?
Embora
seja destinada aos motoristas, a lei faz referência a outros profissionais.
Fala em ajudante somente uma vez, e não
para garantir direitos, mas para exclui-los, quando diz que não se considera
jornada de trabalho o período em que o
motorista ou o ajudante ficarem espontaneamente no veículo usufruindo do
intervalo de repouso diário ou durante o gozo de seus intervalos intrajornadas
(Art. 235-E da CLT).
Menciona
ainda outras categorias, para dizer que, em caso de negociação coletiva, o
intervalo para repouso e alimentação pode ser fracionado, ante a natureza do
serviço e em virtude das condições especiais do trabalho a que são submetidos
estritamente os motoristas, cobradores, fiscalização de campo e afins nos
serviços de operação de veículos rodoviários, empregados no setor de transporte
coletivo de passageiros (Art. 71, § 5º da CLT).
EM QUE A LEI ALTEROU O CÓDIGO DE
TRÂNSITO?
Em
linhas gerais, a lei acrescentou ao CTB o Capítulo III-A, que trata da condução
de veículos por motoristas profissionais, proibindo dirigir por mais de 4 horas
ininterruptas, pois deve ser observado um intervalo de descanso de 30 minutos a
cada 4 horas, que pode ser fracionado, em até três períodos de 10 minutos, de
acordo com regulamentação do CONTRAN (Resolução 405/2012).
Em
situações excepcionais, de acordo com o CTB, o tempo de direção pode ser
prorrogado por mais uma hora até o motorista chegar em lugar seguro. E nesse
aspecto é interessante observar que o Art. 235-E, § 9º da CLT dispõe que em
caso de força maior devidamente comprovado, a duração da jornada de trabalho do
motorista profissional poderá ser elevada pelo tempo necessário para sair da
situação extraordinária e chegar a um local seguro ou ao seu destino, sem
limitação do tempo de uma hora.
O
condutor, por sua vez, só pode iniciar viagem com duração maior que 24 horas
após cumprir o intervalo para descanso, e o descumprimento das normas de
trânsito relativas ao tempo máximo de permanência do condutor ao volante e aos
intervalos para descanso, implica infração grave, multa e retenção do veículo.
Uma
questão que se coloca é se essas regras também se aplicam ao motorista
autônomo, uma vez que a lei fala em motorista profissional somente no caso de
vínculo empregatício.
É
possível entender que no caso do Código de Trânsito, a lei teria aplicação mais
abrangente, até porque o Código, no Art. 67-A, § 7º, determina que nenhum
transportador de cargas ou de passageiros, embarcador, consignatário de cargas,
operador de terminais de carga, operador de transporte multimodal de cargas ou
agente de cargas permitirá ou ordenará a qualquer motorista a seu serviço, ainda
que subcontratado, que conduza veículo sem o cumprimento do descanso, o que
pode ser um prenúncio de responsabilização de outros integrantes do sistema de
transporte rodoviários quanto ao descumprimento da lei. Sabemos, contudo, que a
fiscalização nesse caso é mais difícil.
Outro
aspecto a ser considerado é em relação às finalidades da lei. Se esta tem como
um dos objetivos melhorar as condições de segurança nas estradas, para os
motoristas profissionais e para os outros que compartilham as rodovias com
eles, contribuindo para redução do número alarmante de acidentes nas rodovias,
não faria sentido que as normas se limitassem aos motoristas empregados, que
não são a maioria dos integrantes do transporte de cargas. O tempo e a
Jurisprudência poderão nos dar melhor orientação sobre a matéria.
A LEI PODE SER CONSIDERADA UM AVANÇO?
Há
várias outras questões tratadas na lei ou relacionadas com ela, que não é
possível discutir neste pequeno espaço. Somente para ilustrar, temos a questão
acerca da responsabilidade pela construção e manutenção de espaços, ao lado das
estradas, para que os motoristas possam dar cumprimento efetivo ao que dispõe a
lei. Havia a proposta de responsabilizar o poder público ou as concessionárias
de rodovias, mas o projeto foi vetado nesse ponto.
Por
isso, no tocante aos locais de espera, restou no texto da lei apenas o Art. 9º,
após outros vetados, dispondo que as condições sanitárias e de conforto nos
locais de espera dos motoristas de transporte de cargas em pátios do
transportador de carga, embarcador, consignatário de cargas, operador de
terminais de carga, operador intermodal de cargas ou agente de cargas, aduanas,
portos marítimos, fluviais e secos e locais para repouso e descanso, para os
motoristas de transporte de passageiros em rodoviárias, pontos de parada, de
apoio, alojamentos, refeitórios das empresas ou de terceiros terão que obedecer ao disposto nas Normas
Regulamentadoras (NR) do Ministério do Trabalho e Emprego, dentre
outras.
Ocorre
que não existe NR sobre a matéria e não há NR no mundo que consiga resolver um
problema cuja solução não depende somente de mudança na lei.
Por
falar nisso, mesmo em se tratando de uma lei nova, nosso Parlamento já prepara
mudanças no texto, algumas voltadas mais para o aspecto econômico do que para o
trabalhista -- embora não se possa separar os dois -- a exemplo do aumento das
horas extras para quatro por dia, e do tempo de direção para cinco horas
consecutivas.
Que nossos parlamentares tenham a sensibilidade e a
sabedoria necessárias para tratar um tema tão complexo da forma mais apropriada
possível. Que o Estado brasileiro e a sociedade civil possam se valer da lei
como instrumento para melhorar o desenvolvimento humano e econômico do país,
considerando que a lei dos motoristas profissionais não interessa só a eles,
mas a todos que utilizamos o transporte rodoviário de passageiros e cargas, e
dele dependemos para o atendimento das mais diversas necessidades de nossa vida.
Comentários
Postar um comentário