Nestes
dias, em que a grande mídia deixa de lado as desgraças cotidianas que dão ibope
para focar nas euforias – espontâneas ou induzidas – de nossa paixão pelo
futebol, um jornalista, num programa de rádio, dizia que torcer contra a seleção
brasileira ou protestar contra a Copa do Mundo são atitudes antipatrióticas.
Penso, porém, que é uma falácia colocar a questão como se fosse um dilema: ou
você torce pelo “Brasil” – como se a seleção fosse o Brasil – ou comete crime
de lesa-pátria.
Eu
torço pelo escrete canarinho e sei da sua importância para a autoestima
nacional. Nelson Rodrigues, menos de um mês antes da conquista do campeonato
mundial de 1958, dizia que nosso grande problema era o “complexo de
vira-latas”: “a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente,
em face do resto do mundo. Isto em todos os setores e, sobretudo, no
futebol.” Mas poucos dias depois de
sermos pela primeira vez campeões do mundo, afirmou que “o povo já não se julga
mais um vira-latas. Sim, amigos – o brasileiro tem de si mesmo uma nova imagem.
Ele já se vê na generosa totalidade de suas imensas virtudes pessoais e
humanas.”
A
superação do “complexo de vira-latas” foi destacada novamente pelo cronista, pouco antes do segundo campeonato,
em 1962. Na ocasião, ele afirmou que o triunfo na Suécia foi tão importante
como a Primeira Missa, de Portinari, ressalvando que os índios pintados naquela
tela, em vez de biquíni e umbigo à mostra, deveriam estar de “calções,
chuteiras e camisa amarela.” Disse ainda que o principal papel da seleção de 58
foi ser profeta do grande Brasil, influenciando a vitória do filme O pagador de promessas, que ficou com a
Palma de Ouro, no festival de Cannes de 62, num país em que o cinema não tinha
nenhum apoio, sobrevivendo na base da cara e da coragem.
Não
se de deve esquecer, porém, que além profetizar a força do futebol brasileiro,
Nelson Rodrigues foi o cronista da “vida como ela é”, e futebol faz parte da
vida. Portanto, é bom que se mostre também o seu lado obscuro, a “Copa do Mundo
como ela é.” Um grande espetáculo que
une nações e faz as torcidas cantarem seus hinos, mas que também aparta ricos
de pobres. Estes, mesmo tendo a Copa no Brasil, não têm condição de comprar
ingressos nas arenas construídas em parte com o dinheiro público; um evento que
traz gente de todas as partes do mundo para conhecer nossas belezas, mas também
para explorar sexualmente nossas crianças e adolescentes; uma festa de alegria
de torcidas, mas que também induz ao consumo de drogas ilícitas e lícitas,
fazendo com que nossa dura lex amoleça,
pois permissão para beber em estádios é coisa que só se permite provisoriamente
a estrangeiro e alguns privilegiados, e não permanentemente no estatuto do
nosso torcedor, o que não deixa de ser um reconhecimento jurídico do “complexo
de vira-latas”.
Por
isso, a questão não é dizer que criticar a Copa ou torcer contra a seleção é
crime de lesa-pátria. É bom torcer e festejar, mas sem perder o senso crítico,
jamais. A consciência da “Copa como ela é” implica olhos abertos e ouvidos não
entupidos pelos gritos histéricos e ufanistas, regiamente pagos pelos
patrocinadores do evento. É importante aplaudir nossos jogadores, mas não
esquecer que muitos deles vivem num mundo de luxo e riqueza, inclusive fora de
sua pátria amada – só um titular joga em time brasileiro -- enquanto grande
parte do povo e a maioria dos atletas daqui sobrevivem ainda com a cara e a
coragem, como vivia o cinema brasileiro nos tempos d’O Pagador de Promessas.
Torcer
pelo Brasil não se resume a torcer pela seleção de futebol. Torcer pelo Brasil
é fazer de tudo para melhorar a vida de nosso povo, especialmente dos mais
pobres, que certamente, após a trégua da Copa, retornarão às arenas da grande
mídia, que costuma enfatizar as desgraças cotidianas que dão ibope.
COMO SEMPRE MESTRE SEU TEXTO É MARAVILHOSO! SUSCITO,CLARO E REFLEXIVO. POIS PENSAR É PRECISO NESTES TEMPOS DE ALIENAÇÃO DIGITAL. POR ISSO A IMPORTÂNCIA DE EXALTAR TEXTOS COMO O VOSSO QUE TRAZ A SUPERFÍCIE PROBLEMAS TÃO COMPLEXOS.
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